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Leia íntegra do texto de Patrícia Dichtchekenian sobre o Genocídio publicado no UOL


Genocídio Armênio: as consequências de 99 anos de negação e esquecimento
Reconhecimento do massacre e atual limpeza étnica em Kessab são chave
para entender esse povo tão peculiar

 Por Patrícia Dichtchekenian*

Patrícia Dichtchekenian/ Opera Mundi

 “Eu gostaria de ver qualquer força deste mundo destruir esta raça, esta pequena tribo de pessoas sem importância, cujas guerras foram todas lutadas e perdidas, cujas estruturas foram todas destruídas, cuja literatura não foi lida, a música não foi ouvida, e as preces já não são mais atendidas. Vá em frente, destrua a Armênia. Veja se consegue. Mande-os para o deserto sem pão ou água. Queimem suas casas e igrejas. Daí veja se eles não vão rir, cantar e rezar novamente! Quando dois armênios se encontrarem novamente em qualquer lugar neste mundo, veja se eles não vão criar uma nova Armênia”, escreveu em 1935 o autor norte-americano de origem armênia William Saroyan.

Sobre todas essas desgraças, o escritor se refere principalmente ao primeiro genocídio do século XX, praticado pelos turcos contra os armênios há exatamente 99 anos. Mas o que faz o extermínio desta “pequena tribo de pessoas sem importância” algo digno de se lembrar? Geralmente, o ato de recordação de um massacre vem da necessidade de honrar seus mortos e manter latentes os acontecimentos para que estes não se repitam. Contudo, esse não é o caso dos armênios.

Em primeiro lugar, porque não enterramos nossos mortos. Em outras palavras, não realizamos nosso funeral, pois essa cerimônia só se completaria se tivéssemos a plena certeza de que a humanidade e, principalmente, os turcos compareceriam a ela. No entanto, para isso, é preciso dar um passo a mais. É necessário deixar de lado as amarras que prendem 99 anos de negacionismo e reconhecer os crimes cometidos desde o dia 24 de abril de 1915.

A busca pelo reconhecimento do genocídio é a principal luta da comunidade armênia internacional, isto é, dos filhos, netos e bisnetos da diáspora que espalhou 800 mil armênios ao redor do mundo. Curiosamente ontem, o atual primeiro-ministro turco, Recep Erdogan, reconheceu a “desumanidade” da tragédia de 1915 – algo inédito para um chefe de Estado turco. A partir de uma linguagem mais conciliatória do que os antigos líderes na abordagem do tema, Erdogan também surpreendeu tendo em vista sua postura conservadora, exemplificada nas constantes investidas em restrições de liberdade de expressão, com o bloqueio de redes sociais no país.

Mas isso não é suficiente. Erdogan, em seu comunicado, não usou em nenhum momento a palavra “genocídio” e o desleixo não foi por acaso. Na verdade, a recusa do termo reflete-se no fato de que o genocídio se insere no grupo de crimes contra humanidade, que tem um tratamento muito mais severo do que assassinatos isolados, conforme tratados internacionais. Entende-se que houve uma tentativa de eliminação de um grupo a partir de exigências raciais e étnicas. A isto, soma-se o fato de que a negação da Turquia freia a sua entrada à União Europeia, pois pressupõe uma recusa em assumir respeito aos direitos humanos.

Contudo, há outra questão em jogo: além da necessidade de enterrarmos – com dignidade – nossos mortos a partir do reconhecimento do massacre, é preciso também afastar com todas as forças o fantasma do genocídio e fazer com que ele não se repita. Novamente, não é o caso dos armênios. Atualmente, a cidade síria de Kessab, na fronteira com a Turquia, tem sido palco de uma verdadeira limpeza étnica de armênios.

Com população predominantemente armênia há séculos, Kessab foi brutalmente atacada por militantes extremistas da Turquia ligados a Al-Qaeda no último 21 de março. Para fugir das investidas de cunho étnico e religioso (vale ressaltar que armênios são cristãos), a população local se concentrou em um refúgio em Latakia, a cerca de 50 quilômetros de lá.

Na medida em que o temor de um novo genocídio se aproxima, nos indagamos: será possível continuar a “criar” uma nova Armênia, tal como pressupunha Saroyan? A história diz que sim.

Museu do Genocídio em Yerevan (capital): o monumento circular tem chama em seu interior que representa memória viva da tragédia

A complexa e triste trajetória

Para entender o contexto histórico do genocídio é preciso ter em mente que o massacre de armênios remonta a um período anterior. Entre os anos de 1894 e 1896, o sultão turco Abdul Hamid II iniciou o extermínio de 300 mil armênios que viviam na porção Ocidental do país, anexada pelos turcos durante o Império Otomano.

Contudo, em 1908, o cenário político turco sofreu profundas transformações: O Comitê da União e Progresso, liderado pelos Jovens Turcos, destronou o sultão, proclamando governo constitucional e igualdade dos direitos civis para todos os cidadãos otomanos. Essa mudança radical deu ao povo armênio uma nova esperança.

 No entanto, em menos de um ano, novos assassinatos voltaram a ocorrer. De fato, a proposta dos novos chefes da administração ia além da política Hamidiana: o projeto do Pan-turquismo tinha o intuito de implementar no país a aceitação apenas de turco-descendentes, apelando para um discurso de raças semelhante ao que seria utilizado no massacre de judeus anos depois.

A este panorama soma-se o advento da Primeira Guerra Mundial, quando a Turquia uniu-se aos alemães na Tríplice Aliança. A questão em jogo é que, com o declínio do Império Otomano, a Turquia temia perder cada vez mais territórios, inclusive aqueles historicamente ocupados por armênios que ela já havia anexado. O Cáucaso, aliás, sempre foi uma região cobiçada, já que está em uma importante zona de passagem – entre o mar Negro e o Cáspio; entre o mundo ocidental e oriental.

Havia o serviço militar extensivo para todos, mas muitos armênios da porção ocidental turca pagaram sua isenção, pela falta de razões patrióticas para participarem da guerra. Em um determinado dia, contudo, as cidades foram ocupadas por soldados e o governo intimou todos os homens isentos do serviço militar a se identificarem, sob pena de morte. Assim, os Jovens Turcos finalmente colocaram em prática seu projeto de extermínio de toda a raça armênia, com o intuito de atingir a “otomanização” completa do território.

Tudo começou em 24 de abril de 1915, quando mais de 800 intelectuais armênios foram presos, deportados e assassinados. A partir de então, o massacre consolidou-se e perdurou até os anos seguintes. Foi um procedimento sistemático: ao passo que os homens foram conduzidos para fora das cidades e, em seguida, torturados e assassinados; as mulheres, crianças e os mais velhos receberam a ordem imediata de deportação em um prazo de até uma semana.

Não só foram expulsos de seus lares e entregues a um destino desconhecido, como todos os seus bens foram confiscados e transferidos aos turcos.

O governo obrigava os grupos, que variavam entre 2 e 5 mil pessoas, a se encaminharem para três principais lugares: Sultanieh, uma aldeia no centro do deserto da Anatólia; Aleppo, na capital do norte da Síria; e Der-el-Zor, uma grande cidade no deserto. Após se estabelecerem em terríveis condições, o governo deu-se por satisfeito.

Neste êxodo, muitos morriam de inanição e de doenças. Além disso, sofriam uma série de abusos e torturas por mercenários curdos, que utilizavam métodos extremamente violentos, como relatam sobreviventes.

Eles também contam que, durante esta chamada “marcha da morte”, muitas mulheres foram estupradas e torturadas, inclusive grávidas e mães com criança de colo. Deve-se ressaltar que, mesmo as pessoas que pertenciam à camada mais abastada da sociedade armênia, não conseguiram escapar.

Havia três alternativas para driblar as privações do exílio: as crianças com menos de 12 anos poderiam ser entregues a conventos de dervixes, comunidades de fanáticos religiosos, onde recebiam os ensinamentos da fé muçulmana; as jovens poderiam ser vendidas em praça pública para viverem sob regime de escravidão sexual; e, em alguns casos, as famílias poderiam sobreviver se aceitassem a conversão total de seus membros ao islamismo. No entanto, a maioria dos armênios estava fadada à deportação.

Fato interessante, revelam relatos, é que muitos começaram a indagar a existência de Deus. Visto que a Armênia foi o primeiro Estado a oficializar o cristianismo no mundo, em 303, e a sua Igreja teve um papel essencial na manutenção do Estado e na preservação da identidade do povo, questionar a divindade suprema revela que o próprio povo já havia perdido todas as esperanças.

No entanto, a partir de 1918, muitas transformações ocorreram, alterando totalmente o panorama internacional: a Turquia foi uma das nações perdedoras na guerra; a Armênia proclamou, em 28 de maio desse mesmo ano, a sua independência e, em julho, foi assinado um Tratado de Paz entre esses dois países, em que os turcos reconheciam a soberania armênia. Mesmo após seis séculos de dominação estrangeira, a I República pouco durou, pois, em setembro de 1920, os turcos invadiram a Armênia que, sem condições de defesa, aliou-se aos comunistas, proclamando-se uma República Soviética, em 29 de dezembro daquele ano.

Após todos esses episódios, as autoridades turcas foram acusadas de massacrar 1, 5 milhão de armênios, responsáveis, assim, pelo primeiro genocídio do século XX. Não se deve esquecer que não foi apenas um massacre físico: os danos e as perdas que cultura milenar sofreu são incalculáveis, visto que ela não somente se estagnou em 1915, mas também se dispersou junto com os 800 mil armênios que fugiram para sobreviver. As modificações no idioma e nos hábitos dos armênios com as influências da ideologia comunista e da cultura russa são visíveis até hoje no país.

Apesar de ter ocorrido há 99 anos, o genocídio armênio permanece vivo nos dias de hoje, como vemos em Kessab. A principal questão refere-se ao fato dos sucessivos governos turcos se recusarem a reconhecer dos crimes cometidos. Além de negar, os líderes turcos ainda afirmam que as mortes foram causadas em virtude de uma guerra civil que trouxe doenças e fome, tanto para os armênios, quanto para os turcos. Entretanto, há diáspora como prova viva e comunidades de armênios sobreviventes da tragédia no mundo inteiro para contar o que de fato aconteceu no ano de 1915 e nos meses que se seguiram.

É fato que a história é bem mais complexa do que um jogo de maniqueísmo. Para além do bem e do mal, não se trata de uma demonização de turcos, longe disso. A verdade é que muitos deles lutam pela causa armênia. Não todos, é evidente. Perseguições acontecem e quem se declara favorável publicamente ao reconhecimento do genocídio é perseguido. Mas existe um movimento de resistência e é preciso se agarrar a ele e apoiá-lo por menor que seja.

Atualmente, a Armênia é um país soberano e independente, desde o desmantelamento da URSS, em 1991. Nessa circunstância, o povo armênio se reúne anualmente no dia 24 de abril para relembrar os seus mortos e exigir dos turcos o reconhecimento do massacre. Se a Armênia não pode ser ressarcida de suas perdas materiais, pelo menos assim recupere a sua dignidade moral e mantenha viva sua herança cultural. Com a certeza de que, em algum lugar do mundo, há armênios que ainda vão rir, cantar e rezar novamente.

          (*) Artigo originalmente publicado no portal Opera Mundi

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