A memória é um campo eternamente em disputa. Indivíduos e grupos lutam para estabelecer uma “verdade” sobre o que aconteceu, como e porque aconteceu em determinado ocorrido da história. O genocídio armênio é um bom exemplo dessa disputa: enquanto os armênios se esforçam em todo o mundo pelo reconhecimento dos crimes cometidos a partir de 1915, os turcos inundam os meios de comunicação e a academia com materiais que dissolvem a importância dos acontecimentos durante a I Guerra Mundial, tentando, assim, relegar o Genocídio ao esquecimento.
O jornalista armênio-turco Hrant Dink foi uma vítima dessa guerra pela memória de 1915. Dink, que sempre lutou pela convivência entre turcos e armênios, foi assassinado por um jovem ultranacionalista à porta da redação de seu jornal Agos, em Istambul, no dia 19 de janeiro de 2007. A morte de Dink foi uma tentativa extrema, por parte de um grupo radical, de vencer essa batalha pela memória.
Passados cinco anos do assassinato do jornalista, a sua própria memória está em disputa por jornalistas e intelectuais na Turquia. Dink é tido por muitos como um símbolo da luta por liberdade de expressão e imprensa no país, bem como um arauto do direito das minorias que pegaram carona na sua morte para amplificar os seus anseios, já há muito emudecidos pelo conservadorismo da sociedade e, por consequência, pelo governo turco.
Em janeiro deste ano, a jornalista turca Ece Temelkuran escreveu um artigo para o jornal inglês The Guardian, intitulado “Os jornalistas turcos estão apavorados, mas nós devemos lutar contra essa intimidação”. Neste artigo, Temelkuran afirma que sua recente demissão do jornal onde trabalhava foi fruto de uma perseguição política aos jornalistas, que vem sistematicamente sendo realizada por meio do governo turco (na figura do partido Justiça e Desenvolvimento, do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan) desde a morte de Hrant Dink, em 2007.
Ece Temelkuran descreve como suas conexões com Dink (com quem trabalhava para escrever um livro) e com outros jornalistas foram cruciais para colocá-los sob a mira do governo turco, que encarcerou dois de seus colegas e a deixou desempregada por denunciarem as conexões que o governo teria com a morte de Dink, incluindo o apoio a grupos ultranacionalistas e religiosos, como o que assassinou o jornalista armênio. Em suma, Temelkuran sustenta que a Turquia não é um país de livre imprensa e que ela e seus colegas estão amordaçados pelo aparato estatal repressor, que lança mão de meios escusos e ilegais para retirar os opositores do seu caminho.
Entretanto, as reações ao artigo de Temelkuran não tardaram a aparecer na imprensa turca. Intelectuais como Serdar Kaya, Alper GörmüŞ (vencedor do Prêmio Hrant Dink em 2009) e Etyen Mahçupyan colocaram-se contra o texto de Ece Temelkuran, alegando que a jornalista está usando a memória de Hrant Dink para se autopromover e fazer de sua demissão um complô, assim como teria sido a morte do jornalista armênio.
Essa é a opinião do também descendente de armênios Etyen Mahçupyan, em artigo intitulado “Os parasitas de Hrant”. Para ele, Temelkuran pinta Dink como um secularista de esquerda que estaria à margem da sociedade turca, ao mesmo tempo em que ela confunde o partido e o Estado, fazendo ambos se fundirem na mesma coisa. Assim, Temelkuran pôde sustentar que esse constructo Partido/Estado assassinou Dink, arquitetou a sua demissão e mantém assustados os jornalistas turcos. Contra essa última tese da jornalista, Mahçupyan afirma que “os jornalistas ‘turcos’ não estão todos realmente assustados. Ao contrário, eles são muito corajosos”, pois denunciam e averiguam as manipulações que são feitas sobre o país no exterior.
É nesse ponto que Alper GörmüŞ ataca em “Manipulação vergonhosa em ‘os jornalistas turcos estão apavorados’”, sustentando que o propósito de Temelkuran foi o de pintar a Turquia como uma espécie de Irã, indo a um jornal europeu, expondo uma imagem de Dink assassinado e escrevendo uma manchete tão escandalosa. GörmüŞ acusa a jornalista de jogar o jogo ocidental, que é alardear o fanatismo islâmico turco e alimentar as ideias anti-islã e antiterror, que minariam o governo democraticamente eleito através de um golpe militar secularista no país.
Ou seja, a disputa está posta: de um lado, uma jornalista que vê na sua demissão um complô do partido no poder para silenciar vozes dissidentes; de outro, um grupo de jornalistas que acreditam que a colega está manipulando os acontecimentos ao seu favor, a fim de se autopromover na Turquia e no ocidente, sendo tratada como um paladino dos Direitos Humanos. No centro do debate, está Hrant Dink, assassinado por lutar pela memória dos armênios na Turquia, agora tendo sua própria memória disputada por interesses diversos. Definitivamente, a morte de Hrant Dink foi um divisor de águas na sociedade turca.