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“Diplomacia do caviar” no México: que a verdade seja dita

Por Rodrigo Gómez García, (sinembargo.mx)

2013-ESTATUA-ALIEV-DFHá um ano, a deputada Magdalena del Socorro Núñez Monreal (Partido dos Trabalhadores do México) organizou um seminário na Câmara dos Deputados dedicado à análise de Desaparecimento Forçado e Genocídio. Na ocasião, participou o embaixador do Azerbaijão no México Ilgar Mukhtarov com uma apresentação sobre o caso de Khojaly [atualmente Ivanian, na República de Nagorno-Karabakh] – ocorrido em 26 de fevereiro de 1992 – com a sua visão histórica sobre esse acontecimento, patrocinado pelo governo de Ilham Aliev, o filho do ditador azeri Heydar Aliev, famoso no México pela polêmica envolvendo sua estátua no Paseo de la Reforma.

Com um profundo desconhecimento do significado e uso da palavra genocídio, na conferência de São Lázaro trataram de forçar o conceito para denominar crimes de guerra que não correspondem à categorização de Raphael Lemkin em 1943 e que a Organização das Nações Unidas definiu na Convenção para a Prevenção do Crime de Genocídio em 1948. Mas o que é mais preocupante é que a Câmara dos Deputados mexicana se preste a apresentar acriticamente a posição do governo de Azerbaijão como respeito ao conceito de genocídio e usá-lo como ferramenta política para dirimir o conflito que existe com Armênia e Nagorno-Karabakh desde o início dos anos 1990.

Khojaly não pode ser considerado um genocídio, tampouco um massacre. Vamos por partes: segundo os verbetes desses conceitos, publicados na Encyclopedia of Genocide and Crimes Against Humanity, o primeiro é composto de três elementos essenciais: atos, intenção e vítimas. Há ainda cinco atos elencados na definição da ONU que são distintos em sua natureza, mas que estão unificados em sua estratégia: matar, causar sérios danos e/ou criar as condições destrutivas; os outros dois atos têm a função de impedir a possibilidade de que o grupo continue a existir. O tema da intenção é complexo, mas, fundamentalmente, se refere a limitar as reivindicações de genocídio aos casos que a violência política está especificamente dirigida à destruição de um grupo. Esse objetivo político se apresenta como uma política oficial, ou se expressa como um plano coordenado e sistemático de terror feito pelo Estado. O crime, de acordo com a definição, se dirige não a indivíduos per se, mas às vítimas-objetivo que o são por conta de sua pertença nacional, étnica, racial ou religiosa.

Massacre, segundo a mesma Encyclopedia, pode ser definido como uma forma de ação, normalmente coletiva, cujo objetivo é a eliminação de civis ou não combatentes, incluindo homens, mulheres e crianças. Etimologicamente, a palavra vem de matteuca, que significa espancar; a palavra contém tanto o sentido de matadouro, quanto de açougue. Historicamente, pressupõe que tanto o perpetrador quanto a vítima estão cara-a-cara, ainda que atualmente, com as tecnologias de guerra modernas, os bombardeios a distância também podem ser considerados massacres, sempre e quando se tratam de vítimas civis não combatentes.

A diferença entre genocídio e massacre, segundo os especialistas, é que o termo massacre se refere à deliberada, mas não contínua matança de pessoas desarmadas em um período relativamente curto de tempo e em uma zona geográfica pequena e delimitada. No entanto, algumas vezes, uma variedade de massacres tende a evoluir a um processo genocida no qual se pode usar o termo “massacre genocida”.

Por que Khojaly não corresponde a nenhum dos dois conceitos? Primeiro, há que entender o que aconteceu em Khojaly na madrugada do dia 25 para 26 de fevereiro de 1992.

Khojaly está a 7 km de Stepanakert, capital do enclave armênio de Nagorno-Karabakh, e a partir desse povoado as forças azeris bombardearam durante os meses de janeiro e fevereiro de 1992 as posições militares armênias e russas que estavam entrincheiradas em Stepanakert, matando muitos civis armênios com seus mísseis. Há que se dizer que o único aeroporto de Nagorno-Karabakh, única via de saída do enclave àquela altura, estava nas imediações de Khojaly e, portanto, era uma posição estratégica no enfrentamento entre as forças azeris e armênias durante a guerra.

Também é necessário esclarecer que Armênia não invadiu o Azerbaijão; foram os armênios que viviam no enclave que optaram pela autodeterminação, um princípio do direito internacional e que México defende tem como núcleo de sua política externa.

Perdendo a guerra, o exército azeri decidiu evacuar os habitantes de Khojaly, em sua maioria meshkets  [turcos da Geórgia] provenientes da Ásia Central que haviam acabado ser assentados na região. Para eles, o autonomeado exército de libertação de Karabakh criou um corredor humanitário que permitia que a população civil se dirigisse à cidade de Agdam. Na madrugada, segundo a organização Humans Right Watch, uma coluna de refugiados acompanhada por uma dezena de combatentes em retriada – uniformizados e armados – deixaram a cidade enquanto era ocupada por forças armênias. Quaando se aproximaram da linha de fogo se depararam com um grupamento de forças armênias e ali iniciou-se um combate no qual morreram muitos civis.

Porém, não se trata de um genocídio, tampouco um massacre. As vítimas que morreram no povoado de Nakhitchevanik, muito próximo de Adgam, estavam misturadas com as forças armadas azeris que transportavam uniformes e armas durante sua fuga. O informe de Helsinki Watch menciona que houve combate entre as tropas azeris e armênias: “De acordo com uma mulher azeri de 21 anos, cujo dedos gordos do pé tiveram que ser amputados depois de congelarem, ‘os líderes do nosso grupo eram homens. Os armênios abriram fogo quando nos aproximamos do povoado [de Nakhitchevanik]. Nos cercaram e dispararam. Houve troca de tiros entre os soldados armênios e os nossos.” Um soldado azeri também declarou: “disparávamos e corríamos, mas não era uma retirada organizada. Estávamos todos misturados.”

O que infere o informe de Rachel Denber para a Helsinki Watch é que os civis foram usados como escudo humano pelos militares azeris e muitos morreram durante o combate [1]. O relatório também indica que tanto os militares armênios e russos (no referido combate participou o regimento 366 da extinta URSS), por não suspender o combate ao verem ou suspeitarem que havia civis, como os militares azeris por usá-los como escudo humano, tiveram responsabilidade na matança.

O combate desorganizado que aconteceu perto de Khojaly, independentemente se foi realizado por armênios, como diz o Azerbaijão, ou pela Frente Popular do Azerbaijão, como dizem as forças armênias citando o presidente azeri Mutalibov [2] é um ato de guerra em que, infelizmente, morreram civis. Porém, não pode ser qualificado de massacres, segundo a definição que demos acima, muito menos de genocídio.

Dessa forma, as ações da embaixada do Azerbaijão no México e na América Latina obedecem a uma estratégia do governo azeri para tergiversar os fatos sobre Khojaly, usando para tanto diversos fóruns e cortejando deputados que sabem pouco sobre o conflito em Karabakh para que aprovem resoluções com a versão azeri do conflito.

Essa “diplomacia do caviar” em México já conseguiu que tanto a Câmara dos Deputados como o Senado passassem pontos de acordo reconhecendo que o que aconteceu em Khojaly é um genocídio, um ato que nem a ONU nem a Associação Internacional de Estudiosos do Genocídio (IAGS, na sigla em inglês) reconhecem como tal. Ademais, se México tem interesse em apoiar a resolução do conflito em Karabakh, deve também reconhecer que na mesma guerra morreram cerca de 10 mil armênios, muitos em pogroms incitados pelo governo do Azerbaijão. Tem que estar claro, também, que a campanha de Khojaly é parte de uma política cuja ideia central é a negação do genocídio armênio perpetrado entre 1915-1923 pelo Império Otomano, em uma campanha orquestrada pela Turquia na qual o Azerbaijão atua como aliado.

Já se passaram mais de três anos desde que a Comissão criada pelo ex-chefe do governo Marcelo Ebrard determinou que a estátua do ditador Aliyev, assim como alteração da placa localizada na Praça de Tlaxcoaque fossem desfeitas. Tanto o mapa expansionista que nega a autodeterminação do povo de Karabakh que segue na Avenida Reforma, como a placa que qualifica de genocídio o combate segue na Praça de Tlaxcoaque são mostras do lobby de um dos governos mais corruptos do mundo e que tem feito do México, por meio de dádivas a políticos mal informados, um campo de luta simbólica com objetivos geopolíticos contra Armênia e os armênios de Nagorno-Karabakh.

 

 

[1] A fim de mostrar a tergiversação da matança feita pelo governo azeri, é impostante dizer que o informe de Denber, Namig Aliyev, funcionário do governo azeri, forneceu uma lista na qual se menciona os nomes dos civis que perderam a vida em Khojaly, num total de 133 pessoas, das quais 41 mulheres e 13 crianças, um número distinto daquele apresentado posteriormente pela propaganda do embaixador azeri, 613 pessoas, entre as quais 106 mulheres e 83 crianças.

 

 

[2] O primeiro presidente do Azerbaijão, Ayaz Mutalibov, era o presidente em exercício e, portanto, o cérebro responsável pelo exército azeri durante o combate em Khojaly. É importante mencionar que a intriga política gerada a partir da dita tragédia foi causa de sua renúncia e seu posterior exílio. Apenas um par de meses depois de Khojaly, em abril de 1992, o exilado Mutalibov enfatizou no jornal Nezavisimaya Gazeta (2 de abril 1992) que o assalto à população de Khojaly por parte das forças armênias não foi surpresa, afirmando ainda que existia um corredor humanitário criado pelas milícias para permitir que os refugiados se encaminhassem a cidade de Agdam, então controlada por forças azeris; uma dessas colunas de refugiados foi atacada muito próximo dessa cidade – em território controlado pela Frente Popular de Azerbaijão – pelas forças de oposição azeri para tirá-lo do cargo, culpando-o pelo acontecido, usando as palavras do presidente azeri. Nove anos depois, mas ainda no exílio, Mutalibov voltou a confirmar sua declaração (na revista Novoye vremya de 6 de março de 2001) e disse que “o fuzilamento dos residentes de Khojaly foi, obviamente, organizado por alguém para controlar Azerbaijão”. Esse alguém é o ditador Aliyev, pai do atual presidente do Azerbaijão

Fonte: Encyclopedia of Genocide and Crimes Against Humanity, Dinah L. Shelton (ed.), Thomson-Gale, Michigan, 2005.

 

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