O genocídio armênio foi o primeiro extermínio deliberado do século 20 e serviu como protótipo para outros. O governo turco-otomano matou, entre 1915 e 1923, cerca de 1,5 milhão de armênios que viviam como minoria no território. No mês de abril, quando o genocídio completou 99 anos, o primeiro-ministro turco, Tayyip Erdogan, desejou “condolências” aos netos e descendentes daqueles que viviam no Império Turco-Otomano e morreram devido às circunstâncias do início do século 20.
O tom da declaração revela que o Estado turco se esquiva a assumir o que fez e se exime de culpa pelo ocorrido. Ao se recusar a pronunciar a palavra “genocídio”, Erdogan minimiza os acontecimentos do passado, tratando-os como consequência dos tempos da Primeira Guerra Mundial, uma fatalidade pela qual não podem ser responsabilizados.
Há diversos documentos históricos que comprovam que o massacre perpetrado pelo governo turco foi premeditado e não se tratou de um infortúnio de um país envolvido na Primeira Guerra. A população armênia foi desarmada com o propósito de impedir qualquer resistência; suas lideranças intelectuais e políticas foram os primeiros assassinados, para limitar sua capacidade de reação.
A estratégia de deportações em forma de caravanas rumo ao deserto dizimou milhares de pessoas. As ordens expressas do governante Talaat Pashat comandando o massacre podem ser conferidas em documentos recuperados por historiadores, e as matanças estão registradas em jornais e em outras diversas plataformas.
O primeiro-ministro fala das “consequências desumanas”, como quem se compadece da dor dos armênios, mas convenientemente não atribui qualquer responsabilidade àqueles que ordenaram o genocídio. Sua declaração é estratégica: livra o Estado turco do seu dever de reconhecer os massacres de 1915, referindo-se à tragédia de maneira inédita para sinalizar uma mudança de postura e assim diminuir a pressão internacional que se intensifica. Sua declaração tem o objetivo de dar à sua gestão uma aparência mais democrática e respeitosa aos princípios do direito internacional, para quem sabe assim a Turquia possa chegar perto de entrar na União Europeia –que exige o reconhecimento do genocídio.
Os sobreviventes se espalharam pelo mundo, formando uma diáspora que atua até hoje para que se reconheçam os crimes contra a humanidade cometidos há quase um século contra o povo armênio.
Dalmo Dallari classificou o genocídio armênio como um delito do direito internacional, e fazemos coro a ele quando dizemos que toda nação e todo cidadão tem o direito e o dever moral de intervir em casos de desrespeito aos direitos humanos. A questão armênia não é apenas do seu povo, concerne a todos os seres humanos. Até que os crimes internacionais sejam reconhecidos como tal e o Estado que os cometeu seja responsabilizado, continuaremos a ver a história se repetindo.
Hipocritamente, ao mesmo tempo que manifesta pêsames, o governo turco, em sua fronteira com a Síria, atua para que a população de armênios de uma aldeia, Kessab, seja evacuada, como em 1915. O genocídio, em outra medida, continua.
Erdogan, os armênios não querem sua falsa conciliação. Queremos o reconhecimento de que os nossos antepassados foram vítimas do genocídio. Queremos que suas mortes sejam tratadas pela história em seu significado completo. Queremos que o Estado turco admita que cometeu um genocídio contra os armênios. E queremos que o Brasil reconheça o genocídio, assim como já fizeram vários diversos países.
KENARIK BOUJIKIAN, 53, magistrada em 2º grau no Tribunal de Justiça de São Paulo, é presidente da Associação Juízes para a Democracia
MARIANA BOUJIKIAN FELIPPE, 21, é estudante de ciências sociais na USP. Ambas têm nacionalidade brasileira e armênia
Link Original da matéria: Folha.com