Artigo originalmente publicado no The Armenian Weekly
No dia 29 de maio a imprensa armênia noticiou com empolgação que o Brasil havia entrado no rol de nações que reconhecem o genocídio armênio. Embora os meios de comunicação armênios estivessem baseados em informações fornecidas pelo Ministério de Relações Exteriores da República da Armênia que, por sua vez, replicava informações enviadas pela Embaixada da Armênia no Brasil, nenhuma agência de notícias brasileira confirmava o fato, tampouco a Embaixada do Brasil em Yerevan. Poucas horas depois, o Senador da República Aloysio Nunes Ferreira, do PSDB de São Paulo, postou em sua página no Facebook que a moção de solidariedade (Requerimento 550/2015) apresentada por ele mesmo e pelo também senador paulista José Serra tinha sido aprovada pelo Senado Federal, quando, na realidade, a referida moção havia apenas tramitada e aprovada na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, presidida pelo próprio Aloysio Nunes.
Enquanto a Armênia e ainda tentavam entender o que significava essa moção de solidariedade, o Senado Federal colocou em votação, em sessão plenária no dia 2 de junho, a moção apresentada por Nunes e Serra e subscrita por mais 52 senadores (o Senado brasileiro é composto por 81 membros). Na sessão que aprovou o requerimento, todos os partidos que compõem o Senado recomendaram voto favorável ao texto. O fato da moção de solidariedade ter sido aprovada unanimemente e sem debate na sessão plenária mostra a força da comunidade armênia do Brasil, através de suas inúmeras instituições e entidades, que teve capacidade de articulação política para costurar a aprovação da moção no Senado antes do requerimento ter sido colocado em votação. É evidente que a atmosfera criada pelo centenário do genocídio armênio em abril de 2015 ajudou nesse processo. Nunca antes a sociedade brasileira foi tão exposta a informações e notícias sobre a Armênia e o genocídio. Os principais meios de comunicação deram visibilidade ao centenário do genocídio, impulsionados pelo cenário internacional favorável, sobretudo após o pronunciamento do Papa Francisco sobre o tema.
Entretanto, não podemos creditar apenas à efeméride e aos bons ventos que sopravam do estrangeiro a vitória alcançada pela comunidade armênia do Brasil. Há que se considerar o trabalho feito pelas entidades comunitárias armênias, sobretudo em São Paulo, nos últimos trinta anos, desde a redemocratização do país em 1985. Na primeira metade dos anos 1980, ainda sobre regime militar, os armênios radicados em São Paulo iniciaram um trabalho para alterar o nome de uma estação de metrô da cidade para “Estação Armênia”. A iniciativa deu origem a uma articulação política que dura até hoje, iniciada sobretudo com o então governador do estado de São Paulo Franco Montoro, do MDB (mais tarde PMDB) e alguns de seus aliados, como Fernando Gasparian, que depois viriam a fundar o PSDB, principal aliado político dos armênios do Brasil. Esse mesmo partido governaria o país entre 1994 e 2002, sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso. Nos governos de FHC, tanto José Serra quanto Aloysio Nunes, os senadores proponentes do requerimento aprovado no Senado, ocuparam cargos ministeriais. Foi também no mandato de FHC que o banqueiro Varujan Burmaian foi nomeado embaixador do Brasil na Armênia.
Em maio de 1989, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou a Lei n° 6.468 que instituiu o “Dia da Solidariedade para com o Povo Armênio”. De autoria do deputado Abdo Hadade, a lei equivale a um reconhecimento em nível estadual do massacre de armênios e foi pioneira nesse sentido no país. Mas foi apenas em abril de 2015 que a mesma Assembleia Legislativa aprovou por unanimidade uma nova legislação (Lei nº 15.813, de 23/04/2015) que definia como genocídio – termo ausente no texto da Lei de 1989 – os acontecimentos de 1915, instituindo o “Dia do Reconhecimento e Lembrança às Vítimas do Genocídio do Povo Armênio”, a ser comemorado no dia 24 de abril. A iniciativa foi do deputado estadual Pedro Tobias, do PSDB.
Curiosamente, apesar de contar com a simpatia de Cardoso e do PSDB, a causa armênia hibernou durante os anos 1990 no Brasil. Os anos de neoliberalismo e profunda crise econômica pesaram sobre os ombros da comunidade armênia de São Paulo, cujas entidades eram (e ainda são) mantidas por empresários. A partir de 2003, já no mandato de Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), o Brasil passou por um período de grande crescimento econômico, acompanhado da ascensão de milhões de pessoas para a classe média. A democratização da tecnologia e da internet no Brasil fez com que muitos jovens de origem armênia buscassem por meio de redes sociais suas raízes o que ocasionalmente gerou um reagrupamento de algumas instituições armênias no Brasil que estavam esvaziadas desde o início dos anos 1990. Essa nova onda de mobilização, somada aos ventos político-econômicos favoráveis, fez com que os armênios do Brasil voltassem a pensar em como inserir suas demandas na política nacional. Em 2007, a filial brasileira do Conselho Nacional Armênio da América do Sul contou o apoio do Deputado Federal Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP) para propor o Projeto de Lei nº 899/07, que instituiria o “dia da tolerância e respeito entre os povos, em reconhecimento ao genocídio praticado contra o povo armênio”. No ano seguinte, todavia, a forte oposição do deputado federal Arnon Bezerra obrigou Faria de Sá, em acordo com o CNA, a retirar o projeto de lei, temendo uma derrota que seria irreversível.
Ainda em 2011, o conhecido ator e deputado federal Stepan Nercessian (PPS-RJ) enviou um requerimento à presidência da república pedindo o reconhecimento do genocídio armênio. Um ano mais tarde, o deputado federal Walter Feldman, do PSDB paulista, propôs o projeto de lei nº 3.190/2012 que criminalizaria a negação do genocídio armênio, aos moldes do que vinha sendo discutido na França. Por diferentes razões nenhum dos projetos apresentados logrou êxito. Mas enquanto esses projetos de lei tramitavam no Congresso, o governo federal e o ministério de relações exteriores estreitavam os laços com a Turquia. Em 2010, o então presidente Lula da Silva se reuniu com o primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan para mediar o programa nuclear iraniano comandado por Mahmoud Ahmadinejad. A Turquia havia se tornado parceira estratégica do Brasil durante o governo do Partido dos Trabalhadores, que prima pela aliança com países do chamado “Sul Global” em busca de uma política internacional diferente daquela ditada pelo G7. Quando questionada sobre o genocídio armênio e a escolha de manter relações tão próximas com a Turquia, o governo brasileiro respondia que as relações entre armênios e turcos estavam em vias de normalização desde a discussão dos protocolos de 2009, sendo esse um assunto que não cabia ao Brasil se envolver.
A partir de 2010 a comunidade armênia do Brasil ganhou novo fôlego, com a criação da Embaixada da República da Armênia no país e a promoção do então cônsul-geral Ashot Yeghiazaryan para o posto de embaixador. Enquanto isso, o Consulado-Geral em São Paulo foi ocupado por Hilda Diruhi Burmaian, viúva de Varujan Burmaian. A escolha de Hilda Burmaian, conhecida e respeitada na comunidade armênia de São Paulo, aproximou a comunidade da agenda da República da Armênia, o que fez com que ambas passassem a trabalhar de maneira mais sincronizada em busca de objetivos comuns. Soma-se a isso a reorganização do Conselho Nacional Armênio e da Federação Revolucionária Armênia no país, que renovaram suas diretorias com jovens membros, o que proporcionou um novo olhar para a divulgação da causa armênia, observado sobretudo num trabalho intenso nas redes sociais e novas mídias. Merece destaque nesse sentido o surgimento do website Estação Armênia, o mais importante veículo de comunicação online dos armênios na América Latina. Essa renovação também pode ser observada em outras entidades, como por exemplo a União Geral Armênia de Beneficência.
Em 24 de abril de 2009, o então governador de São Paulo José Serra publicou no principal jornal do país artigo intitulado “nenhum genocídio deve ser esquecido”, causando euforia na comunidade armênia. Serra viria a ser o candidato da oposição nas eleições presidenciais de 2010, perdendo a disputa para Dilma Rousseff do Partido dos Trabalhadores. A pouca disposição do partido da situação em receber as demandas armênias fez com que a comunidade aproveitasse o sinal dado por Serra e buscasse apoio no PSDB, principal partido de oposição. O PSDB, de olho nos votos da comunidade armênia do Brasil (superestimada por algumas de suas lideranças em 100 mil membros – os números reais giram em torno de 40 mil – de forma a parecer mais atraente aos políticos que miravam o potencial eleitoral dos armênios), aceitou a missão de tentar levar a causa ao Congresso Nacional.
O ano de 2014 foi um ponto de virada para a causa armênia no Brasil. Primeiro porque a proximidade do centenário do genocídio armênio fez com que a comunidade se articulasse em torno de uma agenda comum pela primeira vez em muitas décadas. O Comitê Brasileiro para o Reconhecimento do Genocídio Armênio unificou todas as entidades em grupos de trabalho que propuseram ações para divulgar a causa armênia na sociedade brasileira. As atividades do Comitê, centralizadas na embaixada e consulado, conta com representantes de todas as instituições armênias do Brasil. Não obstante a coordenação central, as mesmas entidades continuaram seus trabalhos paralelos, como a ação do CNA e FRA na organização da manifestação às portas do Consulado da Turquia em São Paulo, reunindo centenas de pessoas no maior ato do tipo já visto no Brasil.
No ano de 2014 também aconteceram eleições parlamentares e presidenciais no Brasil. Aproveitando o ensejo, representantes da comunidade armênia procuraram candidatos a cargos importantes nas eleições e pediram apoio à causa armênia. José Serra, então candidato ao Senado, foi um dos que acolheu o pedido da comunidade. Uma vez eleito, em 2015, Serra contou com o apoio do correligionário Aloysio Nunes Ferreira, também Senador por São Paulo, que foi o proponente do requerimento aprovado pelo Senado no começo deste mês.
Resta esclarecer o que significa na prática a aprovação de moção de solidariedade ao povo armênio. É necessário ressaltar, como nos lembra Flávio de Leão Bastos Pereira, professor de Direito Constitucional na Universidade Mackenzie, que o Brasil é uma república federativa presidencialista com um congresso bicameral, no qual a Câmara dos Deputados representa o povo brasileiro e o Senado Federal representa os estados da federação. Tecnicamente, a aprovação unanime do plenário do Senado equivale a um reconhecimento de todos os estados brasileiros ao genocídio armênio, mas não o reconhecimento do “povo” brasileiro (representado pela Câmara), tampouco do Estado brasileiro perante a comunidade internacional. De acordo com o sistema político constitucional brasileiro, para dizermos que o Brasil efetivamente reconhece o genocídio armênio precisaríamos de um decreto legislativo editado e aprovado pela Câmara dos Deputados, e que seria, após tal aprovação, objeto de ratificação por um decreto presidencial, já que a Presidenta da República Federativa do Brasil, Dilma Rousseff, acumula a Chefia de Governo e Chefia do Estado brasileiro perante a comunidade internacional. Outra possibilidade, nos termos do artigo 84, inciso VIII da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, seria a efetivação do reconhecimento, antes, pela Presidência da República (Poder Executivo), seguida da ratificação de tal ato pelo Congresso Nacional, que referendaria tal decisão. É importante notar também que o requerimento 550 aprovado pelo Senado não possui força de “lei nacional”, ao contrário do que ocorreu na Argentina e Uruguai, países que possuem sistemas políticos parecidos com o brasileiro e que já reconheceram o genocídio.
A aprovação da moção de solidariedade representa, sem dúvidas, a coroação de um trabalho intenso da comunidade armênia do Brasil nos últimos trinta anos, cuja aumento de intensidade nos últimos doze meses foi crucial para essa vitória política. Mas ainda é cedo para dar a missão como cumprida. É essencial que se retomem as tentativas de fazer com que o genocídio seja reconhecido pela Presidência da República, pois cabe ao Poder Executivo a primazia pelos rumos da política externa brasileira, enquanto a vitória no Senado é uma questão política com repercussão predominantemente doméstica que mostra a capacidade de articulação da poderosa comunidade armênia do Brasil para que a classe política nacional atenda seus interesses. Enquanto essa discussão não sair dos gabinetes dos políticos aliados da causa, o Brasil continuará permeável ao lobby de Turquia e Azerbaijão, países que crescem de importância nas relações político-econômicas do Brasil nos anos 2010. E esse lobby já começou a reagir à aprovação da moção. Um dia depois da votação, o embaixador brasileiro em Ancara foi chamado pelo governo turco a dar explicações. Cinco dias depois, foi a vez de Ancara chamar seu embaixador em Brasília para consultas. O Ministério de Relações Exteriores do Brasil prometeu se pronunciar sobre o caso em breve. Seja lá qual for a reação do Itamaraty, a Turquia deve acionar os seus aliados no parlamento brasileiro para tentar mitigar o impacto da moção de solidariedade aos armênios com alguma ação de mesmo calibre no Legislativo. Isso vai depender de quanta energia Erdogan, desgastado pela derrota nas eleições parlamentares no último final de semana, vai poder dispor para enfrentar a comunidade armênia no Brasil, ou quanto interesse a independente e bem articulada comunidade turca no país terá sobre o caso. No ano que marca seu centenário, o genocídio armênio parece que veio para ficar de vez na agenda política brasileira.