Texto originalmente publicado em inglês no 168hours.
(Professor Flávio de Leão Bastos Pereira – advogado, professor de Direito constitucional na Universidade Presbiteriana Mackenzie; mestre em Direito Político e Econômico; membro da International Network of Genocide Scholars – InoGS; Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Conflitos Armados, Massacres e Genocídios na Era Contemporânea” da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); Professor orientador na Fundação Getúlio Vargas, pós-graduação em Direito; membro da Inter-American Bar Association – IABA. E-mail: flavio.pereira@mackenzie.br)
A República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, sob a forma federativa de Estado, e que tem por fundamentos, dentre outros, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político, bem como deve conduzir-se, na esfera internacional, quanto às suas relações com os demais Estados soberanos e com as organizações internacionais, observando os princípios da independência nacional, da prevalência dos Direitos Humanos, autodeterminação dos povos, igualdade entre os Estados, defesa da paz, repúdio ao racismo, bem como pela prevalência da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, conforme consagrado em nossa Constituição da República de 5 de outubro de 1988, especialmente em seus artigos 1° e 4°.
Além das determinações constitucionais acima mencionadas, por força do disposto no §2° do artigo 5° da mesma Constituição, também os Tratados Internacionais são fontes normativas protetivas de direitos fundamentais e de princípios a serem observados pelo Brasil.
Diante de tais diretrizes que, por serem estabelecidas em patamar constitucional, ocupam no Brasil posição de supremacia em relação a qualquer outra espécie de norma e atos normativos expedidos pelas autoridades do país, temos como injustificável a posição do governo brasileiro e, também, do próprio Estado brasileiro em não reconhecer como genocídio, o terrível processo de destruição do povo e da cultura armênia, executado pelo Império Turco-Otomano, entre os anos de 1915 e 1923.
Isto pois, como se nota, amparo jurídico e constitucional para tal reconhecimento oficial, existe e é sólido.
Por ter adotado o modelo federativo, assim como Estados Unidos, Alemanha, Argentina etc., o Estado brasileiro é composto, do ponto de vista de sua estrutura política e organizacional, pela União, pelos Estados da Federação, pelo Distrito Federal (onde localizada a capital do país, Brasília) e, ainda, pelos municípios (equivalente aos distritos ou províncias, de outros países).
Cada Estado da Federação brasileira, possui autonomia financeira, administrativa, política e econômica, possuindo cada qual sua própria Constituição (exceto os municípios e o Distrito Federal), que devem ser harmônicas e respeitar os princípios que da Constituição Federal.
Por tal razão, ao menos três Estados da Federação brasileira já reconheceram o genocídio do povo armênio: o primeiro deles, o Estado do Paraná, em janeiro de 2013; o Estado do Ceará, no ano de 2006 e o Estado de São Paulo, em 2003.
Recentemente, em abril de 2015, o Estado de São Paulo também definiu 24 de abril como o dia de reconhecimento e lembrança das vítimas do genocídio praticado pelo Império Turco-Otomano.
Portanto, parcela dos Estados brasileiros federados vêm, no exercício da autonomia própria que marca dita forma de Estado, assumindo seu papel imprescindível na construção dos direitos humanos, que encontra no reconhecimento da verdade e no estabelecimento da memória, importante fase na consolidação da reconciliação dos povos e, pois, da democracia.
Contudo, o governo federal (a União), até a presente data, não reconheceu o massacre do povo armênio praticado pelo Império Turco-Otomano, sob o governo dos jovens turcos, como deve ser reconhecido: o genocídio considerado protótipo dos demais genocídios que viriam a ser praticados ao longo do século XX e início do século XXI.
Tal omissão cobra da República Federativa do Brasil, ao nosso ver, que assuma seus deveres como potência regional na América do Sul, especialmente se considerado que o primeiro país a fazê-lo foi o Uruguai, no distante ano de 1965, portanto, já há cinqüenta anos atrás, sem contar outros países da América do Sul, como Argentina e Chile.
Parece-nos que a demora no reconhecimento do genocídio do povo armênio pelo Brasil encontra explicações, dentre outras, nas relações estabelecidas com o governo da Turquia, nas áreas comercial, militar, cultural, diplomática etc.
Na realidade, a inércia dos países em impedir a ocorrência de genocídios; em não condenar regimes ditatoriais ou totalitários; em prosseguir na manutenção de relações diplomáticas com ditos regimes etc., por conta da manutenção de tais relacionamentos no plano internacional, constitui e integra o conjunto de técnicas de negação, normalmente desenvolvidas por regimes perpetradores ou por revisionistas.
Assim, lembramos que, apesar da histórica atuação do Embaixador norte-americano Morgenthau, já durante o genocídio, até hoje os Estados Unidos evitam utilizar a palavra “genocídio”, no caso do povo armênio e sua destruição pelos otomanos.
E, a Turquia contemporânea, membro da OTAN, é muito clara em “lembrar” os Estados Unidos sobre seus interesses representados pelo governo de Erdogan.
Assim, por exemplo, a manutenção da base aérea de Incirlik, uma das maiores fora do território norte-americano.
O Brasil não escapa a essa lógica.
Assim, por exemplo, embora a Turquia não seja o maior parceiro comercial do Brasil, o comércio entre os países vem crescendo a cada ano. Se considerarmos a presente fragilidade da economia brasileira, concluímos que o Brasil não deseja arriscar a perda de tal parceiro, ainda que por conta de reconhecimento do genocídio praticado.
Segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior do Brasil (Mdic), o comércio entre os dois países passou de US$ 530 milhões em 2004 para US$ 2,102 bilhões, no ano de 2013.
Se a negação do genocídio constitui a sua continuidade e uma de suas fases, a utilização do discurso do condicionamento de relacionamentos comerciais, diplomáticos, militares etc. ao não reconhecimento do genocídio armênio, pela Turquia, revela-se eficaz arma negacionista e, assim, de perpetuação da mais evidente injustiça em face do povo armênio e, até mesmo, do povo turco que deverá prosseguir no futuro vendo-se obrigado a suportar a carga de perpetradores de um dos piores crimes praticados na primeira metade do século XX.
O Brasil, por meio de seu governo federal, deve apressar-se em reconhecer o genocídio armênio, se não desejar permanecer num rol que traz ao seu povo grande vergonha.
Note-se que, inesperadamente e de forma histórica, o governo alemão, além de reconhecer o genocídio armênio, reconheceu também sua co-participação.
De fato, os alemães, que aprenderam com sua experiência, de modo doloroso, a necessidade de assunção de suas responsabilidades históricas (nazismo, comunismo e, agora, seu envolvimento no genocídio armênio), mostram-se como exemplo a ser seguido por países como o Brasil e a Turquia, na consolidação de uma justiça de transição quanto aos seus períodos históricos e políticos mais obscuros.
Animador, assim, a postura de alguns Estados da Federação brasileira, como Paraná, Ceará e São Paulo, que reconheceram oficialmente o genocídio do povo armênio, contribuindo, assim, para que o Brasil caminhe rumo ao seu destino enquanto potência regional e, um dia, como potência mundial, sexta economia do mundo que é, com o quinto maior território do mundo (9.372,614 km²) e uma das maiores democracias do mundo.
Reconhecer o genocídio do povo armênio significa dar um passo essencial para uma causa que, se no primeiro plano pertence a um dos mais antigos e heroicos povos da terra, no fundo, é a causa de toda a humanidade.
Com tal reconhecimento, a República Federativa do Brasil daria cumprimento aos princípios de sua própria Constituição e assumiria sua responsabilidade numa luta que, se em princípio pertence à história do povo armênio, pertence também a toda a civilização.