Por Heitor Loureiro, via Oriente-se
Alguns meses atrás, eu publiquei aqui as minhas impressões sobre “O Homem de Constantinopla”, primeira parte do romance biográfico sobre Calouste Gulbenkian, o armênio que marcou no seu nome na história do petróleo, e prometi voltar com um texto sobre a segunda parte dessa história. Aqui estou para cumprir o combinado e, em linhas gerais, comentar “Um Milionário em Lisboa”, também publicada pela editora portuguesa Gradiva.
A segunda parte do romance escrito pelo jornalista português José Rodrigues dos Santos começa com o velho recurso de início pelo fim, para depois deixá-lo de canto enquanto a história preenche a lacuna deixada na narrativa, até que as últimas páginas do livro encontrem as primeiras. Após o flash-forward, a história retorna para onde ela parou na primeira parte: a busca de Krikor, filho do milionário Kaloust Sarkisian, por sua “amada” que havia voltado para o Império Otomano após uma temporada na Europa, onde se conheceram. Ir e vir da Europa para o interior otomano não seria lá um grande desafio para o filho de um dos homens mais ricos do mundo nos anos 1910, se isso não acontecesse durante a Grande Guerra, quando o governo otomano ocupado pelos Jovens Turcos iniciou um processo sistemático de extermínio dos armênios do Império, o que ficou conhecido como genocídio armênio.
Assim, a primeira parte da obra se passa com o jovem Krikor na cidade de Kayseri, em companhia de sua noiva, de onde são deportados rumo aos desertos da Mesopotâmia juntamente com toda a população armênia da região. Páginas e mais páginas são gastas com os pormenores da deportação e do sofrimento dos armênios que compunham a caravana, bem como com as estratégias de sobrevivência ante os desafios do deserto e dos assaltos de bandos armados que, frequentemente, se lançavam sobre os deportados a fim de obter algum bem que eles carregavam e, por ventura, mulheres e crianças que passariam a viver no interior de famílias curdas ou turcas. Ainda que romanceado, os relatos possuem lastro histórico, não sendo tão discrepantes daqueles narrados por observadores da época e exaustivamente trabalhos pela historiografia do genocídio. Contudo, não possuem o mesmo realismo da narrativa de Mark T. Mustian emGendarme.
Com Krikor no Império Otomano e Kaloust na Europa, os capítulos são alternados entre os dois personagens. Enquanto o filho passa por todo o tipo de privações no Oriente, o pai busca-o incessantemente por meio de contatos na burocracia otomana, enquanto toca seus negócios a partir de Londres. Novamente – como aconteceu em “O Homem de Constantinopla” – a narrativa dos bastidores das negociações milionárias e, muitas vezes, pouco honrosas, da negociação de petróleo no começo do século XX são mais atraentes ao leitor do que o romance de Krikor e a sua luta para sobreviver ao genocídio. Nada muito surpreendente, tendo em vista que é Calouste Gulbenkian, ou melhor, Sarkisian, o personagem principal de ambos os livros. Por isso, não se sinta culpado(a) se as artimanhas do velho Sarkisian para otimizar seus lucros nas negociatas do petróleo te prenderem mais do que a saga de seu filho durante a perseguição promovida pelo governo otomano. O culpado é o autor, que inseriu o massacre de um milhão de armênios a partir de 1915 como pano de fundo de uma biografia que tem pouca relação com o genocídio, numa tentativa de cativar o leitor evocando o sofrimento de um povo em um momento em que a luta pelo reconhecimento desse crime contra a humanidade ganha mais espaço e atenção no cenário mundial, com a proximidade do centenário de seu início – 1915-2015. Contudo, ainda que soe um pouco forçada a inserção do genocídio no romance, não se pode dizer que dos Santos não tenha mergulhado em pesquisa histórica para compor essa passagem. Referências às lideranças otomanas como Mehmet Talaat Paxá, arquiteto do genocídio, ou à guinada nacionalista turca da década de 1910, com o abandono do otomanismo pelo turquismo são dignas de nota. Porém, ao contrário do que fizeram Mark Mustian (Gendarme) e Edgar Hilsenrath (The story of the last thought), Santos não consegue evitar a queda em lugares-comuns como descrever a morte, abandono ou venda de crianças pelas próprias mães durante as deportações genocidas, recurso comum em novelas que buscam popularidade.
Como disse, o ponto forte do livro é a astuta figura de Kaloust Sarkisian e suas estratégias para sobreviver no arriscado ramo petrolífero no agitado século XX. São especialmente divertidas as passagens que o protagonista consegue dar um nó em raposas velhas do petróleo, driblar as autoridades nazistas na França ocupada e desestabilizar figuras do porte de Winston Churchill ou Salazar.
Exageros poéticos a parte – e talvez o maior desses exageros seja as passagens carregadas de tinta ufanista sobre Portugal, país para o qual Sarkisian/Gulbenkian se mudou em busca de tranquilidade fiscal e administrativa para seus negócios – Um milionário em Lisboa é um bom livro e, sobretudo, um bom desfecho para O homem de Constantinopla. Reitero os votos que fiz há seis meses, quando publiquei a resenha da primeira parte da história, para que ambos os títulos sejam publicados no Brasil em breve e, assim, ajude a criar mais interesse no leitor brasileiro sobre o povo armênio, o Império Otomano e sobre uma das principais figuras que viveram em Portugal no século passado, cujos desdobramentos presenciamos até hoje.
Ficha técnica:
- Autor: José Rodrigues dos Santos
- Edição (Portugal): Gradiva, 2013