Após meses de rumores e especulações, a autora Glória Perez, da Rede Globo, confirmou em seu blog que está escrevendo uma novela televisiva que terá a Turquia como cenário. A trama começará a ser filmada em setembro de 2012 e está prevista para estrear no começo de 2013, segundo o site “natelinha“.
Apesar da simpatia do povo turco e do cotidiano encantador presente em várias cidades daquele país (como tem observado e documentado a autora em seu blog), a Turquia é destaque em uma estatística pouco gloriosa: segundo relatório do escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC, na sigla em inglês), o país é um dos principais destinos de pessoas (principalmente mulheres) que emigram enganadas por promessas falsas e acabam em situação de semi-escravidão.
O tráfico internacional de seres humanos é uma grave infração aos direitos humanos e é um dos muitos problemas de caráter global no qual as nações de forma conjunta precisam lidar, ao lado do tráfico de drogas, armas e animais silvestres. Contudo, não é fácil para a República da Turquia lidar com um problema de Direitos Humanos do século XXI sem sequer ter resolvido seus crimes do século passado. A sistemática negação do genocídio perpetrado contra as populações cristãs do Império Otomano, sobretudo os armênios, bem como a criminalização dos debates em torno da temática são indícios claros de que uma nação nascida e criada sobre a égide do autoritarismo não está apta a encarar de frente seus problemas contemporâneos.
Infelizmente, a prática de conservar seres humanos sob regime análogo ao de escravidão não é nova no país. No ínterim do genocídio iniciado em 1915, muitas mulheres e crianças foram tomadas à força de suas famílias e levadas para o interior de casas e mosteiros de turcos e curdos no interior do ainda Império Otomano (Clique aqui para saber mais). Ainda que essas pessoas tenham sobrevivido, elas também são vítimas incontadas e incontáveis do genocídio, indo muito além do 1,5 milhão de mortos entre 1915-23. A sobrevivência desses armênios sob o jugo muçulmano não se deu sem a conversão forçada desses sobreviventes, com a obliteração dos elementos armênios de cada indivíduo, procedendo assim uma turquificação da população cristã do Império que chega a milhões e milhões de pessoas.
A coletividade armênia de São Paulo olha com desconfiança esse novo projeto de Glória Perez. Houve esforços de contato com a autora, incluindo a remessa de material acadêmico-científico que informa sobre o extermínio sistemático de armênios no Império Otomano e a consequente negação da moderna República da Turquia. Nesse sentido, há a expectativa que a autora reveja suas ideias e insira de alguma forma em sua trama a história dos armênios, assírios, gregos, curdos e outras minorias que sofreram diversas privações ao longo dos anos em nome da construção do Estado turco.
As novelas televisivas são um traço característico importante da cultura brasileira contemporânea. Personagens e narrativas ímpares ficam na memória dos brasileiros por anos, como a Dona Armênia, criada e recriada por Aracy Balabanian nos anos 1980-90. As novelas por muitas vezes são o catalisador de importantes debates que a sociedade trava no momento em que é exibida. Contudo, elas podem prestar um desserviço à população se são feitas de forma enviesada ou tendenciosa. Se “O Clone” serviu para divulgar um pouco da cultura muçulmana do Maghreb antes da bestialização total do islamismo pós 11/09, a novela também serviu para uma ridicularização e folclorização de alguns elementos importantes da sociedade marroquina, como a poligamia (que já era pouco usual no início dos anos 2000 e hoje há uma legislação rígida regulando-a e praticamente proibindo-a) e todo o arcabouço linguístico-cultural que foi restringido a alguns insh’Allah. O mesmo aconteceu com Caminho das Índias.
Que a nova novela pode (e deve) abusar dos cenários paradisíacos que a Turquia oferece, bem como da riqueza ímpar de sua cultura não há dúvidas. Entretanto, o que devemos ter em mente quando assistirmos a trama de Glória Perez é que aquele paraíso retratado na TV foi construído durante milênios por diferentes povos e culturas e, no momento em que autoridades turcas tentaram negar essa pluriculturalidade em nome de uma raíz única – turco-muçulmana – aconteceu o genocídio que marcou para sempre a história de armênios e turcos.