Quase um século após genocídio, comunidade armênia luta contra o esquecimento
Reportagem acompanha em São Paulo a cerimônia em memória dos mais de um milhão de mortos pela Turquia entre 1915 e 1917
Via – cartacapital.com.br
“Lutamos para sanar a dor que cada armênio e sua família carregam no peito, para que reconheçam o genocídio”. No dia 24 de abril, essa é a frase que ecoa por todos os cantos do mundo que abrigam uma comunidade Armênia. Em São Paulo, os mais de um milhão e meio de mortos no genocídio comandado pelos turcos entre 1915 e 1917 são homenageados na movimentada Avenida Santos Dumont, zona norte da cidade, onde os fieis se reúnem para uma tradicional celebração na Igreja Apostólica Armênia São Jorge.
Noventa e oito anos após massacre, os armênios seguem pedindo um reconhecimento do genocídio. Até hoje, apenas 21 países reconhecem os crimes. O Brasil não está entre eles. A Turquia se nega a assumir a violência e pressiona para que outros países façam o mesmo. Nações influentes, como os EUA, classificam o episódio como um “grande e triste massacre”, mas evitam a palavra genocídio, temendo embaraços diplomáticos com os turcos. O discurso atual da Turquia é que entre 300 e 500 mil armênios morreram em decorrência de uma guerra civil – e não por perseguição étnica, conforme a versão armênia. Argumentam que cidadãos turcos também morreram no conflito.
A celebração é seguida de um protesto no consulado da Turquia na capital paulista. “O objetivo é pressionar, mas de maneira pacífica. A violência só traz antipatia”, disse um manifestante que não quis se identificar.
O som da cidade que perturba do lado de fora é imperceptível dentro da igreja. Fundada em 1948, saltam aos olhos os ornamentos, quadros, luzes, lustres e roupas, repletas de símbolos bordados. Os símbolos que se espalham pela parte interna do local remetem tanto ao Ocidente, com figuras conhecidas de Maria e dos Santos Expedito e São Judas, populares também na Igreja Católica Apostólica Romana, quanto ao Oriente, percebido na influência do Império Bizantino na arquitetura e na iconografia.
Há muito a se ver e muito a se ouvir. Um coral intervém na missa em quase 100% da cerimônia, iniciada às 10 horas da manhã – antes, fieis já rezavam no templo. O sacerdote e os diáconos fazem suas intervenções cantando a maior parte dos versos. A missa é densa e, neste 24 de abril, triste. Uma parte é reservada às homenagens aos mortos.
Garabed Sapadjian, de 62 anos, integra o Coral da Igreja e frequenta o Clube Armênio SAMA – Sociedade Artística Melodias Armênias, da qual é tesoureiro. “Estamos tentando manter viva a cultura. Tivemos que fugir, mas estamos tentando manter nossa cultura viva. A comunidade aqui é bem unida. O pouco que contribuímos é feito de coração e tentando preservar nossa cultura”, conta.
O grupo é comandado pelo regente Estepan Khatchur Balkian, que há mais de 60 anos dedica sua vida à atividade. “Eu fui subindo aos poucos e agora estou aqui. É assim que as coisas são, vamos adquirindo as responsabilidades com o passar do tempo”, diz ele. Solícito, gradativamente aponta quando se iniciará o Pai Nosso ou as canções e orações específicas em homenagem aos mártires. Cantadas em armênio, as melodias podem ser acompanhadas por um programa completo bilíngüe – mas o regente faz questão de indicá-las para aqueles que não estão habituados ao ritual da missa.
André Hagop Habib, de 15 anos, faz parte da ala mais jovem da renovação da Igreja. O sobrenome diferente, que foge do sufixo ian, é fruto da perseguição sofrida pelo avô, que se refugiou na Síria. Lá, foi adotado por uma família e herdou seu sobrenome. Os pais de André também são sírios; só o menino nasceu no Brasil. “Eu sempre estive na Igreja e quando o bispo me chamou para ajudar nas celebrações eu vim. Isso já faz dois anos”. O menino ressalta a importância dos jovens se envolverem na vida da comunidade. “Eu sou um dos poucos que é fluente em armênio aqui””.
Sobre as manifestações, ele se mostra politizado e confirma a presença no evento em frente ao consulado turco. “Aqui no Brasil o movimento ainda é fraco. Se você olhar pelo mundo, vai ver lugares onde milhares de pessoas saíram nas ruas hoje”.
A missa na Igreja de São Jorge foi acompanhada por cerca de cem crianças, todas matriculadas no Externato José Bonifácio, instalado no prédio anexo à Igreja.
Na grade curricular, a língua e a cultura armênia são exaltadas. É a maneira que a comunidade encontra para que os descentes não percam o vínculo com sua terra e se reconheçam como armênios. “Como qualquer povo que precisou se refugiar, um armênio se reconhece por seu sangue e não por sua nacionalidade”, diz o ator armênio Arthur Haroyan, no Brasil há cinco anos.
Durante uma semana, atividades especiais são programas para relembrar o massacre, desde apresentações de teatro até trabalhos interdisciplinares realizados em sala de aula. Antes da missa, Eduardo Keiro Inoeu, professor de história do colégio – não descente de armênios -, apresenta uma retrospectiva geral do contexto da Primeira Grande Guerra e da situação da Armênia no conflito. “Hoje é um dia para ser relembrado, não comemorado”, diz ele.
Dentre os motivos históricos encontrados para a represália turca está a perda de território na guerra. O Grupo dos Jovens Turcos, recém-chegado ao poder, culpou a falta de unidade armênia pela derrota e, como solução, instaurou a deportação forçada. Em 24 de abril de 1915, um domingo de páscoa, os armênios amanheceram sem uma liderança local e receberam a notícia de que precisavam deixar o país.
O Artigo I da Convenção do Genocídio confirma que o ato, cometido em tempos de paz ou de guerra, é um crime contra o Direito Internacional e que a comunidade internacional deve, então, puni-lo. Em seguida, atesta no Artigo II: “Na presente convenção, se entende por genocídio qualquer dos atos mencionados, perpetrados com a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial, ou religioso”.
“O genocídio é uma questão política. Todos sabem o que aconteceu, não precisamos provar isso. Mas é importante que seja reconhecido por todos os países, porque quando você reconhece um crime, ele não se repete”, diz Arthur Haroyan.
Em uma reunião estratégica, ao defender o extermínio dos judeus, o comandante do maior Holocausto da História, Adolf Hitler, citava o caso armênio para demonstrar sua confiança na impunidade: “Quem ainda se lembra do massacre dos Armênios?”.
Os mais de 7 milhões de armênios espalhados pelo mundo e os cerca de três milhões que ainda vivem na porção de terra que sobrou do país – mais da metade da nação foi anexada pela Turquia – querem mostrar que alguém ainda se lembra e que esse massacre jamais será esquecido.
Eles acreditam que o Brasil tem como obrigação reconhecer os crimes praticados pela Turquia segundo a Convenção do Genocídio, aprovada pela ONU em 1948, depois da incansável luta de Raphael Lemkin, o judeu vítima do Holocausto que cunhou a expressão. Genocídio, genos, família ou grupo; cídio, matança. Ou seja, o extermínio sistemático de uma raça ou etnia.
“A Armênia foi uma das primeiras colônias brasileiras. Temos, inclusive, mais armênios no Brasil do que turcos. É preciso que respeitem os armênios, porque eles são cidadãos brasileiros. E uma demonstração de respeito seria reconhecer o genocídio”.