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Leia trecho de “A Memória tem Dentes”, novo livro de Gilberto Andrade de Abreu

Gilberto Andrade de Abreu é professor universitário, doutor em Educação pela Unicamp, escritor, poeta, autor de 12 livros, entre contos, poemas, romances e ensaios, incluindo a sua Tese “A Deserção da História.” Ganhador do Prêmio Guimarães Rosa de romance do Governo de Minas Gerais, em 1990.

Gilberto com seu livro “Lorca Balada Louca”

O livro Ensaios “A Memória tem Dentes…” ainda está em fase de edição e será publicado em breve, leia trecho do livro abaixo:

Caiu o silêncio sobre Yerevan

A visão é cinematográfica. De qualquer ponto da cidade pode-se avistar o magnífico Ararat. O mais belo dos montes. Rezam as lendas e as Escrituras que sobre ele pousou a Arca de Noé ao fim do Dilúvio. Por um punhado de motivos é o símbolo nacional da Armênia. Por mais absurdo que seja e é, essa enorme massa rochosa recoberta de gelo fica do lado turco, na porção mais oriental da Anatólia. Um enorme fantasma a assombrar os vivos, alertando-os a sempre dormir com um dos olhos abertos. A enorme e negra nuvem ameaçadora permanece ali na sua sombra oposta. É a permanente insônia de Yerevan.

Uma das mais antigas cidades permanentemente habitadas do mundo, ela tem a idade de Roma. Nos quase três mil anos de existência quantas dezenas de povos não cruzaram o seu grande planalto árido? Difícil de responder, mas não de imaginar. Nas alturas caucasianas, grandes rotas de comércio ligavam os extremos, num ir e vir de buscas e entregas. Nos idos muito antigos chegou a ser o limite extremo do Império Romano. Ruínas e inscrições o comprovam, assim como o belo templo de Garni e as suas 28 colunas, abalado e destruído por terremotos e refeito, recentemente, em todos os seus detalhes.

A paisagem é de uma secura sem fim. Urzes e outros arbustos revestem as planuras destituídas de árvores. Que só aparecem nos vales, esses sim de notável beleza cromática. No mais, um amarelo ocre constante reflete os raios solares que ofusca na amplidão. As montanhas muito elevadas emolduram a terra demasiado quente no verão e gélida no inverno. A continentalidade o explica. Os mares próximos são confinados e não umidificam aquelas alturas. Porém, as suas tardes de outono são muito refrescantes. Isso é o que nos dizem os seus poetas. Teria imenso prazer de conhecer algum deles e que me saudasse dessa maneira: “Barev! Vonts es?” Que quer dizer: “Olá! Tudo bem?”

Há uma canção argentina que diz assim: “Me gustan los pueblos chicos de gesto antiguo…” “Me gostam as pequenas cidades de gesto antigo…” (Hamlet Lima Quintana-Tacún Lazarte) É a evocação que Yerevan provoca.

Cercada desde sempre por povos mais poderosos, a Armênia nunca teve autonomia. Vários Impérios se sucederam em seu domínio, desde os romanos, passando pelos otomanos e terminando com os soviéticos. O que não impediu que a sua gente viesse a desenvolver uma cultura rica e sofisticada. A sua língua que recebeu contribuições nem sempre amistosa dos povos da vizinhança possui uma escrita própria. Desde que uma figura genial, Mesrobes Mastósio ou Mesrop Mashtots, em sua tradução da Bíblia, criou um alfabeto de predominância consonantal de 36 caracteres. A princípio, podia lembrar a cuneiforme dos povos mesopotâmicos, mas parece mais uma sequência de cavalinhos em marcha organizada. Originalíssima. O amor pelos livros fez multiplicar uma intensa atividade, realizada de maneira febril, a dos copistas. Muito do que nos chegou da literatura clássica se deveu a eles. Talvez, seja por isso que a poesia e a música sempre acompanharam a sua existência. Todo sofrimento, mas toda a alegria devia ser registrada. E foi.

O maior orgulho dos armênios, razão principal da malquerença de muitos, é o fato de ter sido o primeiro povo a adotar o cristianismo, décadas antes de Constantino. As suas tradições religiosas se mantiveram percorrendo séculos e séculos, pois desde o princípio foram acossados. Os persas queriam convertê-los ao mazdeísmo. Depois vieram sucessivas ondas islâmicas. Essas pressões acabaram por impregnar-lhes a convicção de que a sua religiosidade era a própria afirmação nacional (asgutyun), diferentemente do nacionalismo (asgaynamolutyon) que é exclusivista e não aceita a pluralidade. É a principal razão de o chefe da Igreja Armênia ser denominado de katholikós, palavra grega para universal. Que também provocou contra eles um ódio equivalente.

Uma existência tão longa levou-os a tirar o melhor da terra. Nos pomares e nos quintais. Na criação de pequenos animais e no cultivo dos melhores grãos. Ervas as mais diversas. Os frutos vão das uvas às romãs. Aos damascos e pêssegos. À mesa, vão nos servir um lavash, um pão plano saboroso e porções generosas de kibbehs, kuftas e kebabs, com a coalhada sempre do lado. Acompanha-nos um dos melhores vinhos originários de cepas multisseculares. Ao final, iremos emborcar um dos melhores conhaques do mundo.

Conta-se que nas reuniões dos líderes aliados em Yalta, na Crimeia, Stálin presenteou o Primeiro Ministro Winston Churchill com algumas garrafas de conhaque armênio. E acrescenta-se que solicitou a remessa de centenas de outras que pudesse degustar nos anos seguintes. Já em idade avançada, lhe foi perguntado quais as razões de tamanha longevidade, ao que respondeu: “nunca se atrase para o almoço, fume Habanos puros e beba conhaque armênio.” A fama se consolidou, pois.

Outra marca distintiva da cultura armênia é o krachkar. A palavra junta cruz e pedra. Por óbvio é assim mesmo chamada “cruz de pedra”. Revela uma simbologia ancestral. A peça é esculpida nó a nó como um bordado do qual não se vê o começo nem o fim. Às vezes assumem a forma de cruzes aladas, com a cruz armênia com as suas pontas afiadas sobressaindo sobre duas alas como fogo de uma figura circular –roseta- abaixo e para os lados. Noutras, há figurações de frutos como romãs e uvas ou de outras plantas e animais. O krachkar mais celebrado foi esculpido por um artista de nome Poghos em 1.291. Impressiona por lembrar uma tapeçaria cheia de detalhes harmoniosos como um tecido ricamente decorado. O mais espantoso é que tudo foi ligado por invisíveis liames de fios. Delicadamente esculpidos na pedra.

Existem em profusão na Armênia. Alguns foram talhados ou incrustrados nas montanhas. Ninguém informa quem os esculpiu ou os colocou naquelas alturas. O maior conjunto de krachkar fica num cemitério chamado Noraduz nas margens do Sevan, provavelmente o lago mais elevado de todos. Havia outro de grandes proporções no cemitério de Julfa, localizado num enclave disputado com o Azerbaijão, completamente destruído por soldados azeris em 2.005. Feitos por motivo da salvação de almas de pessoas vivas ou mortas, os krachkars evocam e registram a ambas, a vida e a morte. Chegou a hora de falar delas.

Depois de viverem os maiores reveses em sua história milenar, os armênios ainda teriam de suportar o maior deles. O seu maior transe. Tudo começou no dia 24 de Abril de 1.915. Centenas de intelectuais e líderes comunitários foram presos em Constantinopla. Levados para o interior do país foram cruelmente torturados e mortos. Esse fato macabro deu início a perseguições feitas pelos otomanos contra as populações minoritárias, gregas, sírias e outras, mas de forma mais contundente sobre a armênia.

Diversos massacres ocorreram nas décadas anteriores. A percepção de que o Império desmoronava, depois de dominar imensas regiões e dezenas de povos por mais de cinco séculos, irá provocar uma radicalização monstruosa. As principais vítimas foram populações cristãs. O movimento dos Jovens Turcos, acentuadamente nacionalista, dentre outros objetivos visava impor um processo de homogeneização étnica e cultural. E o fizeram com ações que revelaram extremada crueldade.

Aldeias e cidades destruídas. Em demonstração de absoluto desprezo, milhares de pessoas foram crucificadas. Populações inteiras eliminadas a tiros ou pelas lâminas dos sabres. As matanças se tornaram diárias e por toda parte. Os homens eram eliminados de imediato. Dezenas de milhares foram obrigadas a seguir caminhando pelo deserto sírio, idosos, mulheres e crianças, sem qualquer tipo de alimentação. Eram as Marchas da Morte. Ninguém poderia sobreviver e não sobreviveu. Um milhão e meio de mortos.

O advogado judeu polonês Raphael Lemkin foi o criador da palavra genocídio. Sobrevivente do Holocausto, muitos anos antes ele se impressionou com a tragédia armênia. Desde quando ele ainda estudava Direito na Universidade de Lvov, onde se formou em 1.926, o que é narrado em sua autobiografia: “Então, um dia, li nos jornais que todos os criminosos de guerra turcos seriam libertados… Os criminosos turcos libertados de Malta se dispersaram por todo o mundo. O mais assustador entre eles foi Tallaat Pasha, o Ministro do Interior da Turquia, identificado com a destruição do povo armênio. Um dia, ele foi parado na rua por um jovem armênio chamado Tehlirian. Depois de identificar Talaat Pasha, Tehlirian atirou nele dizendo: ´Isto é para minha mãe´.

Toda a família de Lemkin foi morta nos campos de concentração nazistas. Ele decidiu, então, dedicar a sua vida na tipificação do maior crime contra a humanidade, o genocídio. A sua definição de soberania tornou-se um axioma, “não pode ser concebida como o direito de matar milhões de pessoas.” A sua luta ininterrupta resultou na “Convenção Sobre o Genocídio” aprovada pela ONU em 1.948.

Dentre tantos mortos seria possível escolher uma história pessoal? A palavra cunhada por Lemkin é composta pelo termo da língua grega antiga ´genos´ acrescida da latina ´cedere´ matar. Indica um plano deliberado de um conjunto de ações que visa destruir os fundamentos essenciais da vida de grupos nacionais com o claro objetivo de aniquilá-los. Há pelo menos um caso que merece ser sublinhado e colocado em destaque.
Em seu brilhante livro Imperium, o jornalista polonês Riszard Kapuscinski narra as suas aventuras pelo vastíssimo território da finada União Soviética, onde relata a história de Komitas, o maior dos compositores armênios: “Seu nome verdadeiro era Soomo Soomonian, mas ao tornar-se monge, tomou o nome de Komitas e assim ficou conhecido. Nasceu em 1.869 na Turquia. Lá viviam então muitos armênios, entre 2 e 3 milhões, não se sabe ao certo. Estudou composição em Berlim. Dedicou sua vida à música armênia. Peregrinou pelo interior reunindo canções. Criou dezenas, outros dizem centenas de coros armênios. Musico errante, improvisava poemas épicos e cantava. Compôs centenas de obras magníficas, primorosas, conhecidas em todas as filarmônicas do mundo. Escreveu missas cantadas até hoje nas igrejas armênias.”

Esse grande artista estava no grupo aprisionado em 1.915. Kapuscinski prossegue: (…) “Os soldados turcos conduziram Komitas para as montanhas, de onde pretendiam jogá-lo. A filha do sultão de Istambul, sua aluna, o salvou no derradeiro instante. Mas já era tarde, ele tinha vivenciado mentalmente a queda e isso confundiu os seus sentidos.”

“Contava então 45 anos. Alguém o levou para Paris, mas nunca soube que estava lá. Viveu ainda vinte anos. Nunca mais emitiu um som sequer. Passou vinte anos cum asilo para doentes mentais. Andava pouco, sempre calado, mas observava muito. Pode-se dizer que tomava conhecimento das suas visitas e observava seus rostos.

“Não respondia às perguntas.”

“Experimentaram diversos métodos. Colocaram-no em frente a um órgão. Ele se levantou e saiu da sala. Tocaram discos para que ele ouvisse. Dava a impressão de nada escutar. Alguém colocou certa vez em seu colo um instrumento popular de nome tar. Ele apenas o afastou de si com todo o cuidado. Ninguém sabe ao certo se estava mesmo doente, ou se decidira calar-se para sempre.”

“Talvez tenha sido a sua libertação.”

“Não morreu, porém deixou de viver.”

“Existiu não existindo, nesta suspensão entre a vida e a morte, num alienado purgatório. Aqueles que o visitavam relatam que ficou cada vez mais abatido. Curvou-se, emagreceu, enegreceu. Às vezes mexia os dedos sobre a mesa sem fazer ruído. Mantinha-se sempre calmo e sério. Morreu em 1.935…”

O mais longo dos protestos. Vinte anos de um silêncio ensurdecedor. Concluo pedindo a permissão de outro jornalista, o uruguaio Eduardo Galeano que disse: “Só os tolos creem que o silêncio é um vazio. Não está vazio nunca. E, às vezes, a melhor maneira de comunicar-se é calando.”
Ierevan viu-se invadida pela milésima vez. Ouve-se por todo lado. Reverbera nas montanhas. Percorre os vales. Dança sobre o lago. Invade os ares. Tolda as nuvens dos céus. Escorre nas águas dos rios. Move as folhas das árvores. Inunda as amplidões. Ouves?

É o silêncio.

 

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