Texto originalmente publicado no blog Entretempos de Cassiana Der Haroutiounian na Folha de São Paulo.
O Ensaio Palavra-Imagem de hoje tem uma forte carga emocional para mim, por se tratar da Armênia, minha segunda casa, meu refúgio, meu território ancestral. Convidei meu amigo, professor de História e Relações Internacionais, consultor político de tantos projetos meus e o não-armênio que mais sabe sobre a Armênia que eu conheço. Diante dos combates intensos que os armênios estão travando desde o domingo passado (27) contra forças do Azerbaijão, para defenderem seu direito de existirem naquela região, Heitor escreveu uma carta a um amigo azerbaijano inventado que é de dar nó na garganta. Só leia! Ah, e as fotos são minhas, da minha última ida à Nagorno Karabakh em abril do ano passado.
Meu querido amigo azerbaijano,
Infelizmente, nós não nos conhecemos. Uma pena. Tenho certeza de que nos daríamos muito bem.
Meu nome é Heitor. Tenho 30 e poucos anos. Sou brasileiro de Minas Gerais, um lugar que você provavelmente nunca ouviu falar. Não, não tem aquelas praias paradisíacas que você cresceu vendo nas telenovelas brasileiras que chegavam até esse canto do mundo. Na verdade, não tem praia alguma. Mas tem infinitas montanhas. Minha mãe, professora, ensinou-me que é um “mar de morros”. Quando eu era pequeno, gostava de viajar da minha cidade para a da minha avó e observar no caminho as numerosas montanhas que se espalham pelo horizonte.
Há dez anos, eu me mudei para São Paulo. Sim, aquela cidade de prédios espelhados, ruas engarrafadas… Não, também não tem praia aqui. E tampouco tem montanhas. Ou melhor, até tem, mas colocamos tantos prédios em cima delas que não podemos mais vê-las. Não, não é uma cidade horrível! As pessoas são ótimas! No começo eu me perguntava como os paulistanos poderiam ser legais num ambiente como esse. Mas acho que o problema era eu. Sentia saudade de casa, saudade das montanhas, saudade de fazer um intervalo dos estudos e trabalho, olhar pela janela e contemplá-las. Ainda tenho esse sentimento. Principalmente agora, que contemplo o cachorro do vizinho latindo para mim, enquanto mete seu focinho entre os buracos da rede de proteção na janela do prédio em frente.
Imagino que o teu país, o Azerbaijão, seja maravilhoso! Tenho grandes amigos que já o visitaram e voltaram com a melhor das impressões do teu povo e da tua terra. Infelizmente, não tive essa oportunidade e não terei tão cedo. Claro, a pandemia é um problema, mas não me referia a isso. Alguns anos atrás, teu governo colocou meu nome numa lista de persona non grata no teu país. Calma, não sou um criminoso. Na verdade, para o clã que governa o teu país por quase 30 anos, eu sou um invasor, um intruso que ousou visitar Nagorno-Karabakh.
Estive algumas vezes na região de Nagorno-Karabakh, ou Qarabağ como você pode preferir grafar. Lembro-me do sentimento que tive quando transitava naquelas estradas sinuosas e apertadas pela primeira vez: saudade. Viajei no tempo e no espaço, voltei à minha infância, às minhas Minas Gerais e às minhas memórias. As montanhas de Nagorno-Karabakh – Nagorno que, você bem sabe, significa “montanhoso” em russo – tomavam conta da paisagem. Quando cheguei em Stepanakert – ou Khankendi, como você conhece – o meu sentimento de pertença aumentou: fui recebido por um povo desconfiado, à primeira vista com feições bravas, mas que logo transbordava hospitalidade e acolhimento. Se houvesse uma Minas Gerais no Cáucaso, seria Karabakh.
Ah, sua família é de Karabakh? De onde? Shusha! Conheço bem! Tive a chance de visitar a cidade algumas vezes. Sei que vocês têm muito orgulho dessa cidade que chamam de Shusha e os armênios de Shushi. Que lugar maravilhoso seria o Cáucaso se toda a diferença entre armênios e azerbaijanos se resumissem a uma vogal. Há séculos, aquele local é um farol cultural na região. Ainda hoje, mesmo com ruas inteiras destruídas pela guerra, crianças brincando em ruínas e adolescentes fardados em estado de alerta, Shushi(a) guarda sua majestade. As duas mesquitas da cidade ainda estão de pé. A mesquita Ashaghi Govhar Agha estava mal das pernas quando a visitei. Quem olha-a desde a rua não entende como ainda está lá, no fim de uma rua destruída por bombardeios, onde crianças brincam sobre escombros de uma guerra de 30 anos de idade. A outra mesquita da cidade, a grande Yukhari Govhar Agha, essa sim, estava linda, preservada, recém-reformada pelo governo local da última vez que estive lá. Ela fica bem próxima da Catedral de São Salvador e são mais ou menos da mesma época: final do século XIX. Quem vê hoje as duas torres brancas da São Salvador em todo seu esplendor nem imagina que há três décadas a catedral estava semidestruída, sendo utilizada pelo exército do Azerbaijão como paiol de munição. Sabiam que os armênios jamais bombardeariam sua igreja. Os templos ainda estão lá, meu amigo, como um monumento à civilização dos povos armênios e azerbaijanos, mas também como um monumento à sua barbárie.
É muito triste que teus antepassados não puderam continuar a conviver com teus irmãos armênios naquela região. Claro, nem sempre a convivência foi pacífica. Ao longo dos muitos e muitos séculos em que armênios e azerbaijanos coabitaram Nagorno-Karabakh, tiveram momentos de coexistência, trocas culturais, respeito religioso e até mesmo de casamentos mistos. Em outros, a relação foi de exclusão, negação, extermínio, guerra, ódio e desrespeito, muitas vezes alimentados por retóricas religiosas extremistas ou nacionalismo chauvinista que insistia em colocar no outro a culpa pelos tempos difíceis que todos passavam. Com o fim da União Soviética, as diferenças se transformaram em ódio e as disputas em guerra. Eu entendo que a tua família foi expulsa de suas casas. Sinto muito que você teve que crescer em uma moradia improvisada na periferia da rica e imponente Baku, ouvindo as histórias maravilhosas sobre Karabakh e toda sua riqueza nos tempos antigos, enquanto jornalistas miravam câmeras para você e produziam suas reportagens sobre os refugiados de Karabakh. Sei das tragédias de Khojali e da destruição de Ağdam e entendo a raiva que você possa, porventura, sentir dos armênios e até mesmo de mim, que pisei no teu solo sagrado onde nem mesmo você, filho daquela terra, pode pôr os pés.
Eu te peço perdão por ter entrado na tua terra sem a tua permissão, mas eu estava acompanhado de outro anfitrião, o povo armênio, teu povo-irmão. Povo que, assim como o teu, tem raízes ali, naquelas montanhas cobertas de florestas escuras que dão nome à região: Karabakh, “jardim negro”. Ao contrário do que teu governo diz, eu não sou um invasor do teu país, mas um visitante, um convidado que, humildemente, pedia licença ao povo que ali reside para estar lá. Doeu na minha alma ver que você não estava em casa, meu querido amigo, para me receber. Saber que brigas fraticidas te obrigaram a ir embora, assim como muitos dos seus irmãos armênios tiveram que deixar Baku e Sumgait para viver em alguma terra distante. Eles também sofreram com a intolerância daqueles que foram mobilizados pelo discurso de ódio e realizaram perseguições contra seus irmãos de outra etnia e outra religião.
Longe de mim, meu caro amigo, querer criar falsas equivalências. Vivo num país que agoniza por conta de uma falácia de “uma escolha difícil” entre “dois extremos”. Os meninos e meninas da periferia de São Paulo costumam falar que “sujeito-homem tem que correr pelo certo”. E o certo, na minha visão, meu amigo, com todo o respeito que eu tenho por ti, é que o teu governo não soube reconhecer o direito da maioria da população de Nagorno-Karabakh de decidir seu próprio destino. Preferiu usar da violência para manter a região de maioria armênia sob seu controle. A solução da força falhou e vocês entraram numa guerra fraticida que já dura 28 anos.
Você e teus irmãos armênios que nasceram no final dos anos 1980, assim como eu, nunca viveram um dia sequer sem que estivessem em guerra uns com os outros. Entenda, meu amigo, a culpa não é dos teus irmãos armênios. Tua, tampouco. Vocês só estavam defendendo as vossas terras. O problema, meu bom e velho amigo, é que vocês esqueceram que a terra não tem dono. Ela é de todos e não pertence a ninguém. Vocês esqueceram séculos de convivência, dos milhares de armênios que viviam em Baku, de outros milhares de azerbaijanos que viviam em Yerevan, dos turcos, curdos, persas, yazidis e assírios que cultivavam as mesmas terras que vocês em Nakhichivan, Zangezur e Karabakh. Acreditaram nas diferenças que os separavam, não nas semelhanças que os uniam. Por que o teu governo não aceitou a reivindicação armênia? Por que vocês abraçaram o nacionalismo e a intolerância? Por que vocês tomaram o caminho sem volta da guerra?
Não me entenda mal, meu amigo. Não quero eu, daqui do Brasil, dar uma de sabichão e dizer que tenho a solução para todos os problemas ancestrais que pairam sobre essa terra. Na verdade, mal dou conta de entender os problemas daqui. Então, quando pus os pés na tua terra, eu o fiz com o máximo respeito e com a humildade de quem queria aprender. Como me ensinou uma canção daqui da minha terra: “alguém me avisou pra pisar neste chão devagarinho”. Só não sabia que eu deveria seguir os versos de Dona Ivone Lara de maneira literal.
Viajando de carro por Nagorno-Karabakh com amigos, vi uma construção peculiar, distante no horizonte. Pedimos para o motorista parar o bravo Lada para que pudéssemos andar até a construção. Nossa guia protestou, mas acabou cedendo ao pedido. Andamos uns 500 metros por um lindo campo até chegar no mausoléu turcomeno dos séculos XIV-XV, rodeado por lápides tão antigas quanto. Depois de uns minutos explorando aquele local sagrado e admirando sua beleza e energia, um de nós percebeu que havia buracos no solo onde pisávamos. Estávamos em um campo minado. Não sabíamos se a área já havia sido “limpa” por alguma autoridade, ONG, ovelhas desavisadas pastando por campo tão verdejante ou se seríamos nós, pobres rapazes latino-americanos que faríamos esse trabalho com os nossos corpos. Por sorte, Deus, Alá, Exu ou graças a Halo Trust, saímos vivos e posso hoje te escrever esta carta. Sinto muitíssimo que milhares de pessoas encontraram outro destino naqueles campos.
Sabe, meu amigo, eu fico mal quando vejo as fotos de jovens armênios e azerbaijanos de 18, 19 anos fardados e indo sorridentes para a linha de contato entre Azerbaijão e Nagorno-Karabakh. Eles vão, contentes, defender suas pátrias. Acreditam, genuinamente, que estão prestes a fazer justiça histórica, eliminando o inimigo, defendendo ou libertando o solo sagrado dos seus antepassados. Porém, no fundo, são apenas jovens matando jovens, enquanto oficiais ordenam disparos de artilharias contra alvos que não enxergam, do outro lado da fronteira. Em outros tempos, eles poderiam ser amigos, como eu e você. Mas, como diria Brecht, neste “tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada”, são vítimas da ganância de oligarquias, de interesses geopolíticos megalomaníacos e de projetos pessoais de perenização no poder.
Olha, meu caro amigo, eu entendo a tua raiva dos armênios. Afinal de contas, você não pode mais pisar na terra de seus antepassados. Mas, por favor, tente entender: as coisas poderiam ter sido bem diferentes e acredito que os armênios também prefeririam outra saída que não fosse a guerra, poupando a vida de milhares de filhos dessas montanhas. Da minha parte, vou trabalhar sempre para promover o diálogo, para que os teus irmãos armênios não te odeiem, para que não digam mais que vocês não deveriam existir e que vocês não são diferentes daqueles turcos que tentaram extermina-los em 1915. Mas, principalmente, que os teus irmãos e meus amigos armênios não digam que vocês são invasores, recém-chegados naquela terra que, eles sim, habitavam há milênios. No fim, o que todos nós queremos mesmo é contemplar mais uma vez as montanhas que nos pariram.