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O legado de Leon Cakoff para a cultura armeno-brasileira

Por Sarkis Ampar Sarkissian –

A uma semana do início da 35ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, seu fundador, Leon Cakoff sai de cena para brilhar em um outro plano.

Leon Chadarevian nasceu em Alepo, Síria em 1948 e veio para o Brasil com oito anos de idade, filho de pais armênios sobreviventes do genocídio de 1915-1923. Sua família se instalou na capital paulista, mais precisamente na região da Serra da Cantareira, por onde viveu ao longo de sua vida.

Formado em sociologia e antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) em 1972, Chadarevian se envolveu em política desde a juventude ainda nos primeiros anos da ditadura militar. Iniciou sua carreira como crítico de cinema logo aos 19 anos, escrevendo para o Diário da Noite e o Diário de São Paulo, após ter um artigo censurado pela própria imprensa dos Diários Associados adotou o pseudônimo Leon Cakoff, como meio de driblar a censura e possíveis repreensões por parte do Governo da época. Apesar da mudança de seu sobrenome, nunca renegou sua identidade armênia.

Cakoff era um armênio singular, ao passo que se declarava agnóstico, mas fazia o sinal da cruz (com a mão esquerda). Sobre suas convicções religiosas diz: “Fui carregado às igrejas pelas mãos da mãe, que queria me transferir as suas dores. Sua ‘culpa’: ter escapado do genocídio armênio de 1915, aos quatro anos de idade”

Como crítico estava cansado de exigir mudanças não atendidas, então resolveu por a mão na massa e fazê-las ele próprio. A pedido do então diretor do Museu de Arte de São Paulo (Masp) projetou o que viria a ser a criação de uma Mostra Internacional de Cinema. Cinco anos após a apresentação do projeto viraria realidade, deste modo se deu a primeira edição em comemoração aos 30 anos da instituição.

De fato os ideais políticos de Cakoff foram inseridos no projeto e utilizou a Mostra como instrumento contra repressão cultural imposta pelo Estado. Cakoff utilizou-se de artimanhas para burlar a censura ferrenha existente que pretendia barrar os filmes antes mesmo de chegarem à suas mãos. Contou com a colaboração de diplomatas e embaixadores instalados no Brasil que trouxeram rolos de filmes junto a suas bagagens, cuja inviolabilidade das malas do corpo diplomático é protegida pela Convenção de Viena.

Sendo assim foi possível exibir, em meio aos anos de chumbo que vivia o país, filmes soviéticos, chineses, iugoslavos e tchecoslovacos, que eram entendidos como pertencentes a culturas de ideais ameaçadores ao regime. Apesar de inevitavelmente serem submetidos à análise da censura, apenas um curta chinês teria sido proibido nesta edição.
Além do mais, a Mostra de Cakoff desde seu início primou pelo respeito ao público, que comporia o júri popular responsável por votar e premiar as produções que mais lhe agradassem no festival. Um fundamento democrático pouco experimentado pela sociedade da época.

O sucesso e reconhecimento que a Mostra tem hoje foi sentido pelo seu público inicial de 16 mil pessoas que prestigiaram e pediram sua reedição, aquilo que seria apenas uma edição comemorativa se tornaria anos mais tarde um evento fixo no calendário cinematográfico mundial e um marco para o cinema nacional.

A Mostra ganhou tamanha projeção que seguiu ininterruptamente todos os anos até os dias de hoje. A audácia de Cakoff em trazer pela primeira vez filmes fora do circuito para as salas brasileiras foi fundamental para oferecer um olhar diferenciado sobre o modo de se fazer cinema longe da ótica norte-americanizada de se pensá-lo, que detinha sua zona de influência na América Latina.

Enquanto isso, o cinema soviético, como contraponto ao modelo americano, já estava bastante consolidado como resultante da Revolução Russa de 1917 que via as produções cinematográficas como grandes meios estratégicos para a propaganda ideológica, neste contexto estava inserido o cinema armênio.

Em 1924 foi criada a Armenfilm (Hayfilm em armênio), estúdio estatal responsável pela produção do cinema nacional. Seu primeiro produto foi o documentário Armênia Soviética do mesmo ano. Posteriormente em 1926 filmou-se o primeiro filme preto-e-branco mudo Namus, em 1935 Pepo inaugurou o cinema falado armênio. De qualquer modo, foi apenas nas décadas de 60 e 70 que o cinema soviético despontou com maior inserção. Entre os filmes de maior sucesso estão Moscou Não Acredita em Lágrimas de Vladimir Menshov, vencedor do primeiro Oscar de melhor filme estrangeiro russo e Guerra e Paz de Serguei Bondarchuk, que levou a mesma estatueta em 1980.

Serguei Paradjanov (Parandjanyan), um armeno-georgiano era um destes cineastas em crescimento na União Soviética e se consagrou com o A Cor das Romãs (Sayat-Nova), apesar das pressões governamentais considerarem um filme “inflamador” para as minorias nacionais.

Em 1985 o renomado Paradjanov tem seu filme A Lenda da Fortaleza Suram exibido na 11ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo sendo premiado com o Prêmio da Crítica, dois anos mais tarde O Trovador Kerib do mesmo diretor é apresentado ao público brasileiro.

Henrik Sureni Malyan também teve seu épico Nahapet, um dos melhores filmes que tratam do genocídio armênio, projetado na edição de 85.

Cakoff relata que teria feito uma tentativa de para inserir uma retrospectiva de filmes armênios na edição de 1988, mas, segundo ele, “a União Soviética não estava interessada em promover filmes nacionais de qualquer uma de suas repúblicas”.

Com a fragmentação da URSS e a independência da Armênia em 1991, não haviam mais empecilhos para a promoção do cinema armênio em terras tupiniquins. Foi então que a participação de cineastas armênios passou a ser representada tanto por seus países de origem da diáspora como agora pela Armênia, e não mais sob a bandeira ‘camuflada’ da União Soviética.
As recentes produções armênias lotaram salas logo em 1992 com Grão de Bico de Nigol Bezjian; em 93 o cinema armênio foi muito bem representado por Don Askaryan com Avetik, Komitas, O Urso e Nagorno-Karabakh, cujo trabalho foi desenvolvido fora das fronteiras soviéticas, na Alemanha; além da estreia do novato Atom Egoyan com Calendário. Na 18ª edição do evento a armeno-canadense Garine Torossian é exibida com o A Girl from Moush.

Ao longo das Mostras que se seguiram, Cakoff sempre se preocupou em reservar espaço para os filmes armênios, são inúmeros os trabalhos de cineastas armênios de todas as partes do mundo apresentados no festival. Porém, o cinema armênio não se restringe à nacionalidade daqueles que filmam, mas também é representado pela temática ou pelo local onde é filmado.

Este é o caso de Vodka Lemon filmado por um curdo, Hiner Saleem, retratando com a realidade da Armênia pós-soviética. Saleem inclusive esteve presente e conduziu um bate-papo antes da exibição de seu filme na Mostra de 2003. No mesmo ano foi exibido O Agrimensor dos franceses Sarah Petit e Michel Klein também rodado na Armênia.

No entanto, foi em 2007 que um grande número de produções armênias foram reunidas com os retornos de Don Askarian e Robert Guediguian com Ararat – 14 Visões e Armênia respectivamente; A Casa das Cotovias dos célebres irmãos Vittorio Taviani; Screamers de Carla Garapedian e O Farol de Maria Saakyan.

Já na última edição em 2010 Lux Aeterna de Serge Avedikyan e Vidas Paralelas de Hovhannes Galstyan foram os representantes armênios.

Por outro lado, a Armênia criou seu festival internacional apenas em 2004 e o intitulou de International Film Festival Golden Apricot (Festival Internacional de Cinema Damasco Dourado). Assim sendo, ainda que tardiamente inseriu-se no renomado circuito internacional de cinema, atraindo os olhares do mundo para si e promovendo o cinema nacional para o mundo.

A presença brasileira no Golden Apricot se deu pela primeira vez na terceira edição do festival armênio com o filme Estamira de Marcos Prado, posteriormente o documentário BerlinBall de Anna Azevedo em 2007 e Loucos de Futebol de Halder Gomes no ano seguinte.

Em 2010 Cakoff visitou a pátria-mãe de seus pais pela primeira vez, convidado por autoridades da Armênia, bem como, pela embaixada do Brasil em Ierevan e pelos organizadores do Festival de Cinema Golden Apricot para não apenas apresentar seu filme Welcome to São Paulo, como também para palestrar sobre o cinema brasileiro e ainda compor o júri internacional do festival. Cakoff então se aprofundou ainda mais na qualidade do cinema armênio e firmou uma ponte cultural entre ambos os países, recomendando filmes para seus respectivos festivais.

O cineasta brasileiro Rogério Corrêa viajou em sua companhia para apresentar sua obra Duplo Território que concorreu na categoria documentário junto ao Dorian dos irmãos armeno-brasileiros César e Gregório Gananian que competiu pela produção cinematográfica da diáspora armênia.

Cakoff parecia estar empolgado com sua viagem à Armênia, não mediu elogios à organização do Golden Apricot. Ao conceder uma entrevista havia prometido que voltaria ao país anualmente para contribuir com o festival armênio e completou “eu estarei recomendando filmes brasileiros aos organizadores do festival e possivelmente selecionarei filmes armênios para o meu festival”.

Sua participação no Golden Apricot trouxe uma respeitabilidade ao festival armênio que a cada ano ganha mais projeção.

Infelizmente no final daquele ano Cakoff foi diagnosticado com dois tumores malignos no cérebro e veio a partir um ano depois. Sem ter voltado à Armênia como desejava e não ter cumprido sua promessa em vida.
Contudo, Cakoff nos deixou a certeza de que a semente plantada, aqui com sua Mostra de filmes armênios e lá com um Festival de filmes brasileiros, germinará e dará muitos furtos, é inestimável seu trabalho pelas culturas armênia e brasileira.

A comunidade armênia e o Brasil perdem um grande exemplo a ser seguido por todos aqueles que dedicam seu trabalho a lutar por um bem imaterial que é a cultura e o conhecimento, resgatar suas origens e rememorar sua rica herança por meio de um intercâmbio cultural que nos ofereça o entendimento e expanda os limites restritos, impostos por uma ideologia como meio manipulador da sociedade.

Obrigado Cakoff por ter lutado para oferecer ao Brasil a oportunidade de conhecer o cinema-arte pelo ângulo de um incansável apaixonado, aproximando óticas tão distintas de retratar o mundo, mesmo tão segregado por muros e cortinas… Que suas cortinas abertas há 35 anos permaneçam assim para a posteridade.

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