Por Rev. Dr. Vahan Tootikian
O mês de outubro é conhecido como “mês cultural” para os armênios em todo o mundo. É durante este mês que as igrejas, organizações e armênios comemoram a memória dos Santos Tradutores que criaram a Idade de Ouro da Literatura Armênia no século V.
Os Santos Tradutores eram um grupo de eruditos armênios, chefiados por dois imponentes clérigos armênios, St. Sahag Bartev (350-440) e St. Mesrob Mashdotz (345-440).
O século V foi um período crucial para a nação armênia. Um dos eventos mais importantes da história da Armênia ocorreu em 406 d.C., quando o alfabeto armênio foi criado. Antes disso, por muitos séculos, diferentes cuneiformes eram usados na Armênia, mas o uso destes foi interrompido após a adoção do Cristianismo como religião oficial. As línguas grega e siríaca tornaram-se as línguas oficiais da igreja.
O uso dessas línguas causou grande preocupação para as lideranças religiosas porque:
- As pessoas comuns tinham dificuldade em entender.
- Elas dificultavam a difusão do cristianismo. O evangelismo cristão e o trabalho missionário foram prejudicados pela ausência de literatura instrucional na língua armênia.
- Elas impediam o avanço da cultura armênia e criavam um sério obstáculo ao progresso intelectual, social e espiritual do povo armênio.
Ninguém conhecia tanto este triste cenário quanto Mesrob Mashdotz, um clérigo que recebeu ordens dos Catholicos para fazer uma viagem de pregação na região de Goghtn, na província de Vaspuragan, para promover a fé cristã. Foi no decorrer de seu trabalho que ele teve a ideia de colocar a Bíblia na língua do próprio povo. Um alfabeto armênio foi criado para realizar essa tarefa. Mesrob foi a Neápolis e confidenciou seus pensamentos ao Catholicos Sahag Bartev. Os dois clérigos formaram uma fraternidade de oração para buscar a orientação divina em sua tarefa. Eles se aproximaram do rei Vramshapuh, que apreciou o valor de um alfabeto indígena e seu potencial para moldar a unidade cultural e espiritual do povo armênio.
Contando com o apoio moral e financeiro do rei e dos Catholicos, Mesrob iniciou a tarefa de inventar um novo alfabeto armênio. Ele viajou para a Mesopotâmia, Edessa (Urfa) e Samosata, a fronteira helenizada ocidental da Armênia, onde conheceu um conhecido estudioso e calígrafo Rufinus, o Sírio, amigo pessoal do famoso teólogo Teodoro de Mopsuéstia. Com a ajuda de Rufinus, Mesrob cumpriu sua missão. Ele deu forma a 36 novas letras, criando uma combinação precisa entre os sons da língua armênia do século V e seu novo alfabeto. A invenção ocorreu em 404 d.C. e atingiu sua forma final em 406 d.C. O alfabeto foi uma criação crucial na história do povo armênio. Essas 36 letras foram destinadas a ser, por assim dizer, “os 36 pilares de defesa da nação armênia”. Deve-se notar que durante a Idade Média, mais duas letras foram adicionadas ao alfabeto original.
A invenção do alfabeto armênio inaugurou uma nova era de esclarecimento intelectual e espiritual. São Sahag e São Mesrob recrutaram um seleto grupo de intelectuais para embarcar na tarefa de traduzir os textos patrísticos, os cânones dos primeiros conselhos da igreja , as liturgias e os textos históricos.
Logo, um grupo de estudiosos, sob a liderança de Mesrob e Sahag, iniciou a aventura de traduzir a Bíblia. A primeira tradução foi feita a partir de uma versão do texto siríaco, provavelmente da versão Peshitta. A primeira frase traduzida foi o primeiro versículo do livro de Provérbios: “Para se conhecer a sabedoria e a instrução; para se entenderem, as palavras da prudência”. Convencidos da superioridade do texto grego, os estudiosos armênios concluíram uma segunda tradução, chamada Pootanagi (que significa “traduzida às pressas”) no início da década de 420. Posteriormente, alguns dos tradutores seniores foram enviados a outros centros culturais para aprofundar sua educação e coletar manuscritos gregos e siríacos para futuras traduções.
Ao retornar, os tradutores seniores fizeram a revisão final, comparando a “versão Pootanagi” já concluída com o texto grego, entre os anos 432-438. No ano de 438, o Catholicos Sahag colocou seu selo de aprovação nesta bela tradução e autorizou seu uso na Igreja Armênia. Esta tradução, considerada a mais precisa e estilisticamente eloquente, foi denominada “Rainha das Traduções”.
O novo alfabeto estimulou um crescimento e criatividade extraordinárias na literatura, tanto que o século V foi mais tarde chamado de “Idade de Ouro da Literatura Armênia”.
Dezenas de alunos treinados por Mesrob no funcionamento de seu novo alfabeto viajaram para os principais centros de aprendizagem do mundo conhecido, onde traduziram muitas obras importantes e as trouxeram para a Armênia. Numerosas obras históricas e filosóficas gregas, algumas delas de Platão e Aristóteles, também foram traduzidas para o armênio. Isso provou ser providencial, pois com o passar do tempo muitos dos originais gregos desapareceram, e essas obras foram preservadas apenas por meio de suas traduções armênias.
Logo os escritores armênios progrediram da tradução de obras estrangeiras para a criação de literatura armênia original, como sharagans (hinos de igreja), poesia religiosa e mística, biografias de santos e mártires e obras teológicas e históricas.
O historiador Movses of Khoren preservou fragmentos de cantigos, lendas e épicos armênios pagãos. Chamado de “Pai da História da Armênia”, Movses escreveu uma obra em três volumes que abrange a história da Armênia, desde a história tradicional da nação armênia, escrita por Haig Nahabed (lendário patriarca da nação armênia) até sua época. Esta obra foi o livro oficial da história armênia até o século XIX.
Koriun, discípulo e biógrafo de Mesrob, descreveu a vida e as obras do criador do alfabeto.
Relatos históricos dos tempos do rei Drtad III e São Gregório foram escritos por Agathengelos e Fausto de Bizâncio, enquanto Lázaro de Pharp e o bispo Yeghishe relataram a luta dos armênios para manter sua identidade religiosa e política em face ao ataque persa na Guerra de Vartanantz.
O teólogo Eznik de Kolb, em sua “Refutação das seitas”, descreveu e analisou as crenças e demonstrou as fraquezas de quatro grupos religiosos de sua época – os pagãos, os zoroastrianos, os filósofos gregos e os hereges cristãos.
Para o povo armênio, a Idade de Ouro da literatura trouxe um rejuvenescimento intelectual e espiritual. O aprendizado se espalhou por todo o país e continuou ao longo dos séculos. Com o estabelecimento de escolas e a proliferação da escrita, horizontes mais amplos se abriram para o povo. Como resultado, a igreja armênia se tornou uma igreja nacional, oferecendo sua liturgia na língua do povo, e a consciência nacional do povo armênio aumentou.
O alfabeto armênio desempenhou um papel enorme na preservação da identidade nacional e cultural do povo armênio. Desde o ano 406 DC, a língua armênia sobreviveu em meio a nossa história tumultuada; ela evoluiu e floresceu pelas mãos de escritores e tradutores dedicados, consolidando nosso passado e nosso presente.
Ao longo de nossa longa história, inimigos cruéis tentaram destruir e erradicar nosso alfabeto, mas não tiveram sucesso. Essas 36 letras realmente serviram como os “Trinta e seis Pilares de nossa Defesa”.
Hoje, porém, na Diáspora, enfrentamos ameaças intransponíveis de assimilação total à nossa língua e cultura. Há uma atitude de indiferença da parte de muitos em relação à própria língua e cultura que as gerações anteriores de armênios lutaram tanto para defender e preservar.
Que a observância da Festa dos Santos Tradutores nos ofereça uma oportunidade de autoexame e nos desperte para a realidade da ameaça que nossa língua e cultura enfrentam. Que seja uma oportunidade para renovar e fortalecer nossa decisão de preservar e perpetuar a cultura armênia, nutrindo nosso precioso idioma. Que essas 36 letras continuem a servir como nossos “Trinta e seis Pilares de Defesa”.