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Em 15 de outubro de 2015, a Corte Europeia de Direitos Humanos julgou o caso Perinçek v. Suíça (reclamação no. 27510/08), entendendo por maioria que houve uma violação ao artigo 10 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, o qual traz a garantia à liberdade de expressão. A reclamação se originou da condenação criminal sofrida pelo político turco, Doğu Perinçek, por violação ao artigo 261, parágrafo 4º, do Código Penal Suíço. O reclamante afirmou em diversos eventos públicos ocorridos na Suíça dos quais participou em 2005 que as deportações e os massacres sofridos pelo povo armênio no Império Otomano a partir do ano de 1915 até 1923 não poderiam ser classificados como genocídio.
Dentre suas declarações em tais eventos, cita-se:
Deixe-me falar para o público europeu de Bern e Lausanne: as alegações do “Genocídio Armênio” são uma mentira internacional. (…)” (07/05/2005, Canton de Vaud)
O problema curdo e o problema armênio não foram um problema e, acima de tudo, nem ao menos existiram … (22/07/2005, Canton de Zürich)
Nesse sentido, a Corte analisou a possibilidade de justificação da condenação criminal de Perinçek pelo artigo 10, parágrafo 2º, da Convenção (possibilidade de limitação à liberdade de expressão). Assim, os juízes decidiram, baseados na jurisprudência própria da Corte, que qualquer limitação ao direito de liberdade de expressão deve observar três requisitos essenciais: deve ser prevista pela lei do país, utilizada com o fim de proteger um dos interesses legítimos enumerados pelo parágrafo 2º e “necessária em uma sociedade democrática” para proteger tais interesses.
Primeiramente, a Corte decidiu que a limitação imposta à liberdade de expressão do reclamante poderia ser considerada como prevista pela lei suíça. Em seguida, decidiu que essa limitação teve a intenção de proteger o “direito de outros” (no caso, a comunidade armênia que sofreu os massacres de 1915 e seus descendentes), mas entendeu que o argumento do governo suíço de que o discurso de Perinçek teria colocado em risco a ordem pública não estava suficientemente demonstrado.
Finalmente, a Corte decidiu que o discurso do reclamante teria “uma natureza histórica, jurídica e política”, relacionando-se a um debate de interesse público. Ademais, achou problemático o fato da Corte suíça ter se baseado na noção de “consenso geral” na caracterização legal dos eventos de 1915-23 para justificar a condenação. Mais ainda, a maioria entendeu que as declarações de Perinçek não representaram um discurso de ódio ou incitaram a violência, fazendo, nesse ponto, uma distinção com as declarações que negam o Holocausto judeu, que, segundo eles, teriam repercussões mais prejudiciais. Assim, a Corte concluiu que a condenação do reclamante não teria sido “necessária em uma sociedade democrática” para a proteção da honra e dos sentimentos dos descendentes das vítimas do Genocídio Armênio.
É importante destacar que a Corte não se pronunciou sobre a existência ou não de um genocídio contra o povo armênio no Império Otomano em 1915-23. Porém, ao estabelecerem que o Genocídio Armênio não pode ser considerado um “consenso geral”, deram força ao discurso negacista dos revisionistas turcos.
Por muitos anos, as principais táticas dos turcos para negar o Genocídio Armênio tem sido as reivindicações de que os massacres sistemáticos e em larga escala não ocorreram, que o governo turco otomano não teve nenhuma responsabilidade pelas mortes que ocorreram e que não é possível aplicar o conceito legal de genocídio aos eventos de 1915-23.
Com essa decisão, a Corte Europeia de Direitos Humanos deu a esses três argumentos negacionistas utilizados no discurso de Perinçek uma máscara de debate “histórico, jurídico e político”, ao invés de considerar o Genocídio Armênio, como sugeriram os votos divergentes, um “fato histórico claramente estabelecido” (página 121).
Essa decisão mostra ao mundo que a Turquia tem tido uma estratégia eficaz em seu objetivo de colocar em dúvida a real natureza dos massacres de armênios no Império Otomano. Porém, é necessário reconhecer que tais massacres não foram uma fatalidade em tempos de guerra, nem culpa do imperialismo europeu ou até das vítimas. É necessário dar a esses massacres o nome correto: Genocídio.
Ao menos 15 países europeus reconhecem o massacre do povo armênio como genocídio. E, se a maioria dos países reconhecem o extermínio em massa dos judeus da Europa como o arquétipo de genocídio, em torno de 13 países daquele continente criminalizam a negação do holocausto.
A decisão da Corte Européia de Direitos Humanos (CEDH) não veda aos países membros da União Européia a promulgação de normas inibidoras da negação do genocídio armênio, diante de sua soberania e da vigência de seu ordenamento jurídico interno.
Contudo, sua recente decisão ora sob comento favorece a percepção de certa incoerência: a liberdade de expressão e pensamento deve ser preservada como coluna necessária imprescindível aos regimes democráticos, encontrando limites apenas e tão somente no denominado discurso de ódio (hate speech).
E, se a negação do holocausto é utilizada, em certas ocasiões, como instrumento para disseminação de idéias antissemitas, a negação do genocídio do povo armênio, em tese, também pode prestar-se como meio para disseminação do ódio contra os armênios.
Por ocasião da decisão no caso do filósofo e escritor francês Roger Garaudy, a mesma Corte Européia de Direitos Humanos decidiu que:
Não há dúvida de que contestar fatos históricos claramente estabelecidos como o Holocausto, do modo como procede o requerente na sua obra, de forma alguma diz respeito a um trabalho de pesquisa histórica relacionado com sua busca da verdade. O objetivo e a finalidade de um empreendimento desta natureza são totalmente diferentes, pois na verdade se trata de reabilitar o regime nacional socialista e, por via de consequência, de acusar de falsificação da História as próprias vítimas. Destarte, a contestação de crime contra a humanidade aparece como uma das formas mais agudas de difamação racial contra os judeus e de incitação de ódio em relação a eles. A negação ou revisão de fatos históricos deste tipo coloca em causa os valores que fundamentam a luta contra o racismo e o antissemitismo e são de uma natureza que perturba gravemente a ordem pública. Atentando contra direitos de terceiros, atos deste tipo são incompatíveis com a democracia e os direitos humanos.
Por razões semelhantes, a negativa do genocídio armênio vem sendo usada como estratégia para afastar responsabilidades históricas, assim também como ferramenta de ódio contra o povo armênio como ocorreu, por exemplo, na cidade síria de Der Zor, considerada pelos historiadores como local de memória do genocídio armênio com importância simbólica equivalente à importância de Auschwitz no contexto do holocausto, onde foi destruída pelo Estado Islâmico a Igreja do Memorial de Der Zor, em setembro de 2014.
Referido memorial jamais constituiu qualquer espécie de alvo militar. Foi destruído como mais um ato próprio do negacionismo e de ódio contra o povo armênio e mais uma tentativa de reescrever fatos históricos claros e já comprovados, como decidido pela CEDH no caso Garaudy.
A organização prévia e sistemática do massacre dos armênios pelo Império Turco-Otomano a partir de 1915 foi um evidente genocídio, devidamente documentado e denunciado, já à época, por diplomatas e pela imprensa norte-americana, especialmente o The New York Times.
Ressalte-se que a decisão da CEDH não teve por objeto a discussão se o morticínio do povo armênio, entre 1915 e 1923, foi ou não genocídio; mas, se sua negação deveria ou não ser criminalizada.
Tal debate também ocorreu na França, quando o Presidente Nicolas Sarkozy assinou lei punitiva para os casos de negação do genocídio armênio e com previsão das mesmas sanções previstas pela lei punitiva para os casos de negação do holocausto, vigente na França, quais sejam, um ano de prisão e multa de €45,000.
O Conselho Constitucional da França, a mais alta estrutura administrativa do país competente para apreciar questões relativas à constitucionalidade das leis, decidiu que a norma punitiva da negação do genocídio armênio era inconstitucional por violar as garantias da liberdade de expressão consagradas pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (artigos 10 e 11), bem como pela Constituição da República da França de 4 de outubro de 1958. Referida decisão estabeleceu que:
É legítimo que o Parlamento estabeleça normas sobre o abuso no exercício do direito de liberdade de expressão e de comunicação que violem a ordem pública e os direitos de terceiros. No entanto, a violação do exercício desta liberdade – que é um pré-requisito para a democracia e uma garantia de respeito para outros direitos e liberdades – deve ser necessária, adequada e proporcional, considerando-se os objetivos buscados.
Porém, também na França, a negação do holocausto constitui crime, assim como na Áustria, Bélgica, Suíça, Alemanha, Espanha, Eslováquia, Polônia, Itália e Luxemburgo.
A lei francesa que criminalizou a negação do holocausto é a Lei nº 90-615 (Lei Gayssot), em seu artigo 24b. E, a Lei nº 2003-88 de fevereiro de 2003 também pune ofensas contra os judeus e a prática de atos racistas e antissemitas.
Assim, observamos certa incoerência também no caso francês, quanto a tão polêmico tema.
Entendemos e concordamos com a necessidade de preservação da liberdade de expressão, porém não quando utilizada como garantia para a negação de fatos históricos devidamente conhecidos e comprovados.
O desafio repousa na necessidade de estabelecimento de critérios legais justos e harmônicos para punição do discurso de ódio e preservação da memória das vítimas dos grandes genocídios suportados pela humanidade.
*FLÁVIO DE LEÃO BASTOS PEREIRA.
Advogado, Professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito Político e Econômico. Membro da Network Genocide Scholars – InoGS. Membro do grupo de pesquisas “Guerras, Massacres e Genocídios na Era Contemporânea” da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP/CNPQ). Membro do grupo de pesquisas “Arqueologia da Repressão e da Resistência” da UNICAMP/CNPQ. Membro da Comissão Municipal da Verdade do Município de Osasco.
**AMANDA PILON BARSOUMIAN.
Aluna de graduação na Universidade Presbiteriana Mackenzie (Faculdade de Direito). Vencedora do Concurso Nacional Universitário de Redação promovido pelo Comitê Brasileiro do Centenário do Genocídio Armênio (2015).