Por Heitor Loureiro, via Oriente-se.
Meses atrás, recebi da editora Gradiva de Portugal – por intermédio dos editores do Portal Estação Armênia – as belíssimas edições do romance biográfico de Calouste Gulbekian, businessman armênio que fez fortuna no começo do século XX, intermediando as negociações de petróleo dos campos de Baku e Mesopotâmia com as grandes corporações ocidentais. Pelos seus serviços, cobrava uma comissão de 5%, o que o levou a ser conhecido pela alcunha de “Mr. Five Percent”. Hoje, contudo, Gulbenkian é mais conhecido pela fundação que leva o seu nome do que pelos seus feitos como homem de negócios que o alçaram ao posto de um dos homens mais ricos de seu tempo.
A história de vida do excêntrico bilionário rendeu algumas biografias e muitas lendas ao longo dos anos, principalmente em Portugal, para onde se mudou em 1942 fugindo dos problemas causados pela II Guerra Mundial na França, e onde se encontra a Fundação, mundialmente conhecida, sobretudo, pelos que estudam História da Arte – uma das paixões de Gulbenkian era colecionar obras de arte – e procuram na entidade financiamento para pesquisas.
É justamente de Lisboa que vem os livros “O Homem de Constantinopla” e “Um Milionário em Lisboa”, títulos do romance escrito em dois volumes pelo jornalista português José Rodrigues dos Santos, célebre homem de letras em Portugal, mas pouco conhecido deste lado de cá do Atlântico. Fecundo escritor, dos Santos tem uma dúzia de romances publicados, além de ser doutor em Ciências da Comunicação, professor da Universidade Nova de Lisboa e colaborador de grandes veículos midiáticos como BBC e CNN. O currículo e o prestígio do autor o qualificaram para ser o homem a dar tintas de romance à biografia de um homem público, rico e muito influente. Uma tarefa dúbia: se a quantidade de informações ofertadas sobre Gulbenkian “facilitariam” o trabalho do escritor, certamente há vigilância em torno da memória do mecenas e homem de negócios cujos herdeiros têm interesse em preservar. Nas linhas a seguir, darei as minhas impressões sobre o primeiro volume dessa biografia, “O Homem de Constantinopla”.
Nessa obra, conhecemos Kaloust Sarkisian – nome do personagem que corresponde ao real Calouste Sarkis Gulbekian – que no leito de morte em Lisboa recebe a visita do filho, Krikor, para quem dirige as suas últimas palavras: “O que é a beleza?”. Angustiado para saber o significado dessa frase mezzo-Wilde, mezzo-Kundera, Krikor revira os pertences do recém-falecido pai a fim de descobrir a resposta para a indagação suspirada pelo homem moribundo, quando encontra cadernos manuscritos pelo patriarca nos quais havia rascunhado sua autobiografia, desde a infância na cidade otomana de Trabzon, onde nascera em 1869 e fora criado sob a rigidez de uma abastada família armênia, cuja riqueza era oriunda do comércio de tapetes e de cargos ocupados na burocracia otomana. Com o passar dos anos, o pai de Kaloust – Vahan – consegue, por meio de contatos escusos e obscuros no governo, uma licença do sultão para intermediar a importação de querosene de Baku e Batum e assim a família do interior se muda para a capital, Constantinopla, onde multiplicam a fortuna e matriculam o filho no Robert College (escola norte-americana que seria o embrião da conceituada Universidade do Bósforo).
O problema começa quando o esfacelamento das possessões otomanas nos Bálcãs leva o Império a uma crise sem precedentes e o sultão Abdul-Hamid II promove uma série de perseguições e massacres contra as minorias cristãs, principalmente os armênios. Em meio ao turbilhão político da última década do século XIX, a família ainda consegue fechar vantajosos negócios e manda o jovem Kaloust estudar Engenharia na Inglaterra, onde entra em contato com a sociedade europeia, com o mundo das artes, negócios e claro, sexo. Obcecado pela beleza, Kaloust visita galerias e exposições, conhece artistas e adquire pinturas para a sua contemplação. Ao mesmo tempo, preocupado com a velhice, se relaciona com adolescentes por “prescrição médica” na esperança que ao compartilhar a cama com jovens meninas o fizesse recuperar a vitalidade, numa típica manifestação da “síndrome de Dorian Gray”, velha conhecida dos psicanalistas e porto seguro para os escritores. Em meio a negociações de petróleo, de contratos de exploração e de fornecimento para governos, verificamos a audácia e destreza de Kaloust para os negócios – talento que demonstra ter desde criança nos mercados de Constantinopla – em rodas de conversas com políticos e empresários baseados em figuras reais, o que prende a atenção e despertam o interesse do leitor.
Deixando o enredo de lado, cabe ressaltar que o livro é baseado em uma sólida pesquisa histórica, principalmente no que tange aos meandros da história do petróleo no primeiro quartel do século XX – da formação das grandes companhias como a Shell e dos bastidores das negociações de grandes contratos – quanto de fatos da vida de Gulbenkian, quero dizer, Sarkisian. De fato, um trabalho louvável.
No que tange à “questão oriental” e à “questão armênia”, a narrativa é menos convincente. Ainda que os acontecimentos relatados encontrem fundamentação historiográfica – merecem destaque as menções que o autor faz às ações dos partidos revolucionários armênios em busca de direitos no Império e à corrupção e patrimonialismo na burocracia otomana – a construção dos personagens é um tanto quanto óbvia. Desagrada-me particularmente a “consciência histórica” que os personagens demonstram ter acerca dos massacres e das perseguições que sofriam no Império, vitimizando-os em demasia. Uma estratégia narrativa bem diferente daquela de Franz Werfel – Os 40 Dias de Musa Dagh (Paz e Terra, 1995) – e Edgar Hilsenrath – do formidável The Story of the Last Thought (Scribners, 2000) – cujos personagens eram psicologicamente complexos e espelhavam o caos do Império Otomano da virada do século XIX para o XX, ao invés de serem oniscientes, como se a população média otomana tivesse total domínio das vicissitudes da política do Império e do sistema internacional. Passagens como esta são especialmente cansativas:
Na Europa falam em liberdade, igualdade e fraternidade e essas ideias estão a espalhar-se pelas nossas comunidades como fogo em erva seca. Queremos igualdade e queremos liberdade, mas os Turcos respondem com a espada. Graças a Deus as potências europeias, todas elas cristãs, têm-nos ajudado e feito guerra aos Turcos e exigindo protecção às minorias. (p. 53)
Por outro lado, esse tipo de narrativa torna a obra leve, de fácil leitura e assimilação e é perfeita para atingir grandes públicos que procuram livros “agradáveis” – palavra pouco adequada para definir obras que abordam, ainda que tangencialmente, o massacre de armênios – como aqueles que ficaram conhecidos nos EUA pelo rótulo de Airport Novels. Não por acaso o autor recebeu o selo “Escritores de confiança – 2013” da Seleções do Reader’s Digest, a mãe dos livros de aeroportos.
Devemos louvar, todavia, a coragem de José Rodrigues dos Santos, em devassar a vida do patriarca de uma das famílias mais influentes no mundo, abordando inclusive assuntos polêmicos como a pedofilia e as práticas comerciais, digamos, “não-ortodoxas”. Em tempos que as biografias no Brasil estão na mira de “guardiões da memória”, a ousadia de Santos pode nos ensinar como ser historicamente crível e, ao mesmo tempo, ético.
Para aqueles que desejam saber mais sobre a história dos armênios e um dos filhos mais ilustres desse povo, é um livro indispensável. Os que têm interesse em romances com narrativas que fogem da obviedade das tramas amorosas de Nova York ou Paris, também acharão em “O Homem de Constantinopla” uma obra que cumpre as expectativas. Para os leitores que procuram histórias “baseadas em fatos reais” – sobretudo os que se interessam por narrativas ambientadas no Oriente Médio – não vão se decepcionar com a acurácia das informações investigadas por José Rodrigues dos Santos. Mas para os mais exigentes, que além de uma narrativa magnética procuram personagens complexos e diálogos que flertam com a historiografia sobre os armênios e o genocídio, certamente ficarão mais satisfeitos com Hilsenrath ou Werfel.
Faço votos para que o livro seja publicado por alguma editora brasileira muito em breve , em edição adaptada para o português brasileiro, de modo a fazer companhia nas estantes e bibliotecas a livros da mesma temática como “Os 40 Dias de Musa Dagh”, “De Volta a Istambul”, “Gendarme” e “O Grito do Cordeiro“.
Resta-me agora encarar as 700 páginas da segunda parte da história: “Um Milionário em Lisboa”.
Nota: 8.0 (entenda a nota)
Ficha técnica:
- Autor: José Rodrigues dos Santos
- Edição (Portugal): Gradiva, 2013