Norair Chahinian e sua jornada no Ararat: “Para os armênios a passagem é garantida”.
Stepan Norair Chahinian é paulista, graduado e mestre em Arquitetura pela Universidade Mackenzie e mestrado em Estética e história da arte pela Universidade de São Paulo (FAU/USP), além de fotógrafo. Suas raízes armênias sempre o mantiveram ligado ao país de seus antepassados o que o levou até a Armênia em 2004 para um projeto que posteriormente resultou em um livro de fotografias.
Numa espécie de jornada de retomada e reconquista dos lugares armênios da Turquia, Norair Chahinian se armou de sua câmera fotográfica e algumas lentes para clicar uma parte da herança armênia que ainda existe no país algoz. Escalar o Ararat foi para ele mais do que um desafio pessoal, mas também uma afronta à intolerância turca que não permite que os armênios do outro lado da fronteira (distante apenas há poucos quilômetros do Monte) desfrutem da montanha que pariu o povo armênio há milhares de anos atrás.
Logo abaixo você lê a entrevista que a equipe do Portal Estação Armênia fez com o fotógrafo Norair Chahinian sobre a sua viagem rumo ao cume do Monte Ararat.
ENTREVISTA:
Portal Estação Armênia- Como foi a decisão de ir para a Turquia?
Norair Chahinian – A decisão de ir à Turquia foi naturalmente a decisão de ir à Armênia. Para Armênia eu fui em 2004 e agora tive a oportunidade de voltar com um projeto novo. Mas a Turquia sempre esteve nos planos, porque nossos territórios estão lá, então eu queria ir ver. E foi algo planejado sim, porque é um país diferente, uma cultura diferente, um idioma diferente, então foi uma viagem que eu planejei por alguns meses e durou uns quatro ou cinco meses. Fiquei um mês em Istambul que foi um período de aclimatação e conhecimento e depois três meses e pouco pela Anatólia. E aí, eu pude visitar mais de 15 cidades, vilarejos e boa parte do que restou do patrimônio armênio.
EA – Como você definiu para que lugares você iria durante a jornada?
Norair – Foi um pouco ao acaso, até porque eu não queria ter um roteiro planejado, não queria estar com grupos ou guias, para eu justamente ter a liberdade de poder ficar o tempo necessário em cada cidade, e ai foi um sentido meio a leste. A minha idéia era entrar pela Geórgia e novamente entrar na Armênia. Então foi uma sequência de oeste para leste e tive bastante tempo na fronteira com a Síria, em Marash, Urfa, Aintab, todas essas cidades que estão próximas à Síria, e Vakifli também, que é o último vilarejo armênio que existe na Turquia e está prestes a perder seu status (leia a matéria sobre o caso, clique aqui).
EA – Que tipo de recepção você esperava ao saberem de sua origem?
Norair – Eu esperava encontrar uma diversidade de reações e realmente elas aconteceram, mas por mais que você tente imaginar a reação da recepção, a surpresa sempre faz parte desse tipo de viagem. Então eu tive surpresas bem agradáveis, turcos e curdos que realmente fizeram possível a minha viagem. Tive ajuda, tive indicação, tive até proteção, então acho que tudo depende da maneira que você aborda as pessoas, o momento, a forma. É um pisar em ovos! Você tem que ser comedido, se expor ao mínimo possível, mas por outro lado tem que ser firme nas decisões. Quando você fala que quer ir visitar um vilarejo por causa de uma igreja, e que o mesmo fica a dois dias de caminhada, o cara pergunta: – Mas você realmente quer ir? – Então, não é brincadeira! Você acaba se envolvendo com as pessoas.
EA – Você acha que essa recepção te deixou, digamos, mais a vontade?
Norair – Claro, a recepção vai te deixando a vontade. Quando você é bem recebido e consegue fazer o seu trabalho você vai se sentindo bem, isso vai te dando força e as coisas acabaram acontecendo. Eu já tinha a idéia de tentar encontrar a casa da minha família, e acabei tendo a sorte de encontrar, fato que gerou uma matéria no jornal Agos [NR: jornal turco-armênio fundado pelo jornalista Hrant Dink] e repercutiu bem em outros jornais da Turquia (Clique aqui e leia matéria de Norair no jornal Agos, traduzida para o português). Inclusive, a partir disso que eu fui seguido [pela polícia turca]. O único problema que eu tive foi a própria matéria, então foi uma coisa engraçada. Será que é verdade né (risos)? Vai ver o governo turco acordou! Mas, faz parte. Hoje, assim como eu, existem muitas pessoas fazendo muitas coisas. Eu acredito muito que nós temos que tirar aquela coisa da cabeça: “Ah, naquela terra eu não piso mais, mataram meus avós!” Mataram! Mataram os meus também e não é por isso que vou deixar de ir lá, mas sim pelo contrário; a gente tem que criar, de alguma forma, anticorpos e ir pra lá, ver, fotografar, documentar, escrever e mostrar que aquele povo não foi exterminado como era o plano. Eu brincava muito com os caras nesse sentido. Eu falava: “Então o plano de vocês falhou! Vocês foram incapazes!”, e eles ficam doidos, porque eles nem querem aceitar que isso foi um plano de extermínio, ainda mais que falhou, não é mesmo? E nós estamos aqui pra provar que sim, falhou! E eles ficavam doidos. Mas a Turquia é um país interessante! O fato de ser brasileiro ajudou, pois muitas vezes eu era “brasileiro” e não tinha necessidade de falar a minha real missão.
EA – E como é a escalada?
Norair – Subir o Ararat aparentemente é fácil! Realmente é algo que da para se fazer. A dificuldade é superável! Para alguém que tem o mínimo de preparo, disciplina e vontade, não é nenhum “bicho de sete cabeças”! Tem que ser feito com grupo. Existem hoje três agências credenciadas que levam os grupos e em geral são guias curdos que recebem bem os armênios. Você leva quatro dias na escalada, três para subir e um para descer.
EA – O Portal Estação Armênia noticiou a sua chegada ao cume do monte Ararat durante sua viagem (leia matéria). A escalada foi algo ao acaso ou foi planejada?
Norair – O Ararat, pela proximidade já da Armênia, era naturalmente o fim da viagem. Eu sabia que iria acontecer no fim da viagem, também pela temporada, para você escalar é de julho ao fim de agosto, é isso é uma condicionante também. Mas estava nos planos sim. Eu sempre quis ir de moleque, desde que a gente é menininho e ouve falar da montanha, nós queremos saber como é essa montanha. E eu gosto de viajar, gosto de montanha, eu já subi várias montanhas, então como que não vou subir na nossa?
EA – Conte um pouco mais sobre os dias que você passou na montanha.
Norair – Eu escolhi uma dessas organizações, chamava-se Ararat Trekking. Eles te pegam no hotel em Doğubayazıt – que é a cidade mais próxima da montanha – e te deixam na base do Ararat, a 2.200 metros. Eles te deixam ali e as mulas vão levando as barracas, fogareiros e todo equipamento de acampamento, enquanto quem vai escalar segue a pé. No primeiro dia são 6 ou 7 horas de caminhada de mil metros, a 3200 e o grupo dorme no local. No dia seguinte é o dia que eu achei mais puxado, você anda quase 9 horas e a subida é muito íngreme, cheia de pedras soltas. Você tem que andar com muito cuidado, muito devagar. O segredo é andar devagar, até por conta da respiração. Eu andei devagar e fiz meu ritmo. Porém, as vezes você precisa dar uma caminhada mais rápida, um piquezinho, você sente a falta de ar. Não tem como ser diferente, é normal! Ai você chega a 4.200 e dorme lá. No dia seguinte, você acorda e faz uma caminhada básica de 4200 a 4500 metros, a fim de se preparar pra chegar ao cume. No esperado dia de chegar ao cume, o grupo sai às 3 horas da manhã e leva cerca de 7 a 8 horas, dependendo do ritmo, para chegar lá! Você sai de 4200 metros e vai até os 5165 da montanha. E nesse dia já tem que colocar o que eles chamam de “grampão” na sola da bota e também é necessário o uso dos bastões de escalada, pois nos últimos 200 metros a subida é absurdamente íngreme, além de que venta muito. Ao chegar no topo a sensação é de -40° C, com vento de quase 100km/h. É uma coisa para se ficar atento. Inclusive eu fui tirar a luva para segurar a bandeira. Assim que fiz a foto a bandeira voou das minhas mãos. Você também não agüenta muito tempo lá em cima, são cerca de 30, 40 minutos no cume. Assim que o grupo todo chega, o guia já prepara a descida. E esse dia, no fim, você acaba caminhando de 10 a 11 horas. São cerca de 5 horas para descer até 4.200 metros, aonde o grupo dorme mais uma noite para no dia seguinte descer até os 2.200 da base. Então são 5 dias no total. A descida é demais. Você já subiu ao cume então a descida é relaxante e a paisagem é linda. É incrível, vale muito, muito, a pena!
Veja álbum de imagens:
EA – Você recomenda algum equipamento especial para quem quiser escalar a montanha?
Norair – Levar duas boas jaquetas, uma corta-vento e uma de abrigo, uma calça boa de escalada e um calçado. Fundamental é a bota. É importante que seja uma bota que você já tenha caminhado um pouco com ela e que seja impermeável.
EA – E quanto aos grupos de escalada, como funcionam?
Norair – No meu grupo eram 16 pessoas, contando comigo. Então eram: 8 turcos, 3 checos, 3 eslovacos, além de um rapaz do Líbano e eu. De armênio era só eu e aconteceu um fato engraçado: No dia anterior à escalada os guias fazem uma reuniam para explicar como é a subida. Nessa reunião as pessoas se conhecem, fazem amizades, pois vão passar os próximos 5 dias juntos. E, nessa reunião uma das mulheres, que era turca por sinal, encrencou comigo, dizendo: Olha, sua bota não é para alpinismo! No Brasil não neva e você nunca subiu uma montanha tão alta!”.
Enfim, pensei comigo: “Será que não vai dar? Será que é real mesmo? Dane-se! Vou subir!”. E eu subi e desci (a montanha) e não vi nenhum rastro dessa mulher, nem no topo, nem no caminho de volta. Eis que na volta ao acampamento eu encontrei ela e não consegui deixar de falar: “Olha a bota que você falou (mostrando a bota), tenta [subir] ano que vem com ela!”. E ai eu abri que eu era armênio, abrindo o tema. Nesse momento ela argumentou: – “nossa como assim? Eu sei o que aconteceu, foi uma guerra!”- Eu falei para ela: “não, não foi uma guerra, foi uma outra história que vocês não reconhecem, houve aqui um genocídio!” Enfim, espero que ela consiga subir ano que vem, se a montanha deixar! Porque a montanha não deixa qualquer um subir. Ela é seletiva! Ela é seletiva, mas para os armênios a passagem é garantida.
EA – Qual é a sensação de chegar ao topo do Ararat?
Norair – É incrível, existe uma energia muito forte que se sente no topo. E eu tenho certeza que o armênio que estiver lá vai sentir isso também. É uma coisa que te da força. Os últimos 50 ou 100 metros da subida são muito difíceis, só que nesse ponto não há como desistir. É uma coisa que tem que ir pra cima, tem que chegar. A montanha te puxa, ela te traz. E é uma sensação de satisfação e dever cumprido por ter alcançado um objetivo. Para as pessoas, o Ararat é uma montanha como qualquer outra, mas para nós, essa é especial. A primeira coisa que fiz foi olhar para os quatro lados. Eu dei um 360° e pude entender o quanto é perto e o quanto é longe. Você vê a Armênia embaixo, bem ao seu lado, porém eu tinha que andar 700 km para chegar naquele mesmo lugar, do outro lado da fronteira. É um cume muito significativo na região, é muito energético! É uma montanha mágica! E a sensação é essa, de magia. É uma coisa ímpar!
EA – Qual foi a repercussão da sua escalada entre seus amigos?
Norair – Os amigos próximos ficaram sabendo e as pessoas sempre ficam felizes. Você vê que minha história mostrou que é possível. Tanto que muitos me perguntaram: dá para ir? Quero ir? – Eu respondo que sim, da para ir, vamos! Todos os anos têm vários grupos que escalam na temporada, de julho a agosto.
EA – Qual foi o intuito real da sua jornada?
Norair – A jornada tem como intuito [provar] aquilo que eu falei: O plano falhou! Os armênios não foram exterminados, eles continuam na Turquia. Existe uma comunidade muito forte em Istambul. Existem movimentos políticos, sociais, culturais muito fortes acontecendo dentro da Turquia. Depois do assassinato do Hrant Dink em 2007 algumas portas se abriram por conta da evidência do mártir. Ficou claro que a luta dele era muito bem fundada e muito real. Então eu acho que isso deu oportunidade para os armênios de lá e os armênios da diáspora passarem a ter um trabalho lá dentro. E meu trabalho é um pouco isso, de mapeamento, levantamento, e depois isso se tornar público, de uma maneira ou de outra. Mas são documentos que serão compartilhados, porque são testemunhos. Desde a mensagem que está lá, há 90 anos, numa residência particular até as igrejas que hoje viraram mesquitas, ou viraram ruínas ou celeiros de gado. Enquanto imagens elas são muito extremas. De um lado você tem um celeiro de vaca e por outro você tem uma igreja em Diyarbakir que foi restaurada, está funcionando, tem uma cruz, um padre, tem um respeito, enfim. Então a Turquia ainda tem esses extremos que é interessante serem explorados em forma de imagem, no meu caso em forma de fotografia. Também passei por Djavakh na Geórgia, mas essa eu deixo pra uma posterior conversa. Então é isso, vamos começar a editar o material e vão sair algumas coisas legais.
EA – E quanto à Armênia?
Norair – Quanto à Armênia, deixo aqui o meu manifesto! A Armênia está num momento muito difícil. As pessoas voltam maravilhadas de lá, porque a Armênia realmente é um país lindo, receptivo, acolhedor. Mas quando você vai ao âmago da coisa, você vê que está passando por sérias dificuldades, o êxodo é cada vez maior. Hoje estamos com menos de dois milhões de habitantes e, infelizmente, acéfalos. A Armênia hoje não tem governo. As pessoas que estão lá hoje, ocupando cargos, não têm caráter de governantes. Porque deles se espera outra atitude. Porque hoje a Armênia suprime interesses de dez, doze famílias e seus chegados. Isso é muito ruim! Tem eleições ano que vem (2013) e vamos ver o quanto vão deixar, o quanto vão fazer. O povo esta com muito medo, isso é uma coisa que eu pude perceber depois de 2008 o povo não se anima mais a sair às ruas e protestar contra o governo porque pode morrer, igual muita gente foi assassinada na ocasião.
Fim…