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Laços que não se rompem… nem mesmo após um genocídio

O Portal Estação Armênia vem recebendo inúmeros e-mails de relatos dos impactos do genocídio que atingiram inúmeras famílias armênias, separando-as e criando feridas que jamais cicatrizarão. 

Nós do Portal temos a alegria de publicar hoje o relato de Regina Kurdoglian Jones.

Regina é paulistana, armênia, professora, ativista da Causa Armênia e durante anos fez parte do grupo gestor do Departamento Cultural do Clube Armênio SAMA, liderado pelo Enguer Harout Distchekenian. Hoje, Regina mora no Texas, de onde nos manda esse impressionante relato.

Laços que não se rompem.

Por Regina Kurdoglian Jones

História difícil de contar; trágica, chocante, inacreditável  e, acima de tudo, revoltante.  Aqui vai o relato da neta de um dos sobreviventes do genocídio perpetrado pelo exército da Turquia otomana contra os armênios no começo do século XX.

Quando eu era criança, meu avô, sentado numa das cabeceiras da mesa da sala de jantar, sempre com lágrimas nos olhos contava que, aos sete anos, fujindo dos turcos em direção a um porto na região de Marash juntamente com sua mãe e a irmã de cinco anos, fora obrigado a abandonar a mãe desmaiada de frio na rua sobre a neve. Esse relato era feito por ele sempre após o jantar e de uma dose de aguardente, aos prantos, todos os dias…

Ainda muito criança, apavorado e seguindo a trilha de outras crianças na mesma situação, caminhou com a irmã em direção ao porto, aonde sabia que navios americanos estariam para o resgate dos refugiados. Cansados de tanto caminhar, sentaram-se os dois na beirada de uma mureta à espera de uma determinação por parte das autoridades. Esta chegou através de duas freiras que estavam a recolher meninas órfãs de pais armênios. Sem aviso prévio, levaram a irmã rumo ao navio em que somente meninas seriam transportadas. Sozinho, então, foi encaminhado a outro navio, o de meninos, que o levou à Grécia.

Em Esmirna, cresceu em um orfanato e estudou Geografia e Desenho Artístico para tapetes orientais. Naquela cidade, conheceu minha avó, na época uma adolescente, e que também era refugiada oriunda da cidade armênia de Tokat.

Após algum tempo, já noivos, decidiram que tentariam a vida no Brasil. Para certificar-se de que essa seria a melhor escolha, meu avô resolveu viajar antes, arrumar trabalho e mandar as passagens se assim o conseguisse. Enquanto isso, minha avó, aos 14 anos, sua irmã com 13 e sua mãe também trabalhavam na cidade de Esmirna, a fim de poupar dinheiro para um fundo de viagem.

E assim o fizeram por dois anos, até que juntaram recursos suficientes para a mudança ao Brasil. Meu avô vendia condimentos em feiras-livres de São Paulo. Casaram-se e tiveram dois meninos e uma menina. Essa menina é a minha mãe. Com a renda de seu pequeno negócio, compraram um imóvel, alimentaram e deram escola aos três.

Nesse ínterim, meu avô enviava cartas à procura de sua irmã a todos os serviços postais dos países onde provavelmente pudesse encontrá-la. Meu avô incansavelmente aguardava, e trabalhava nesse sentido com a esperança de reencontrá-la.  Assim o fez por quarenta anos, quando este dia chegou.

O Serviço Postal Americano respondeu sua carta. Sua irmã fora encontrada morando em Boston.

Imediatamente ao receber o seu endereço, entrou em contato através de uma carta e resolveram fazer um reencontro no Brasil. Foi exatamente no ano em que nasci. À essa altura, meus avós já possuíam três netos: eu, minha irmã e um primo.

Minha mãe contava que ambos os irmãos não se cabiam de alegria e que passaram aquele Carnaval no salão do Centro Armênio fazendo daquele momento o maior de suas vidas, tamanha era a intensidade do contentamento.

Dez anos após esse reencontro, meus avós decidiram fazer o inverso e visitá-los em Boston. Conheceram seus sobrinhos e sobrinhos-netos numa viagem que durou três meses

Esse foi o segundo e último reencontro que tiveram.

Após tudo isso, eu que sempre gostei de idiomas e já arranhava um pouco o inglês, escrevia cartas para minha prima, a filha do casal, que muito cordialmente respondia prontamente. Passamos cerca de vinte e cinco anos nos correspondendo, porém os últimos três por telefone, uma vez que eu me mudara para Dallas, no Texas.

 Nosso primeiro encontro só ocorreu no ano de 2005. Ela, aos oitenta e três anos e eu já uma quarentona. Desde então mantemos contato e nos falamos com frequência. Na semana passada, ao ir a Boston para um casamento, fiz questão de visitá-la.  Aos oitenta e oito anos, dois filhos e três netos, é pintora até os dias de hoje: pintou uma imagem de seu avô, morto pelos turcos, descrita por sua mãe. Os turcos, impiedosamente, fizeram questão de mostrar aos filhos sua orelha amputada.

Nas visitas que fiz a ela em Boston, com tempo restrito, não consegui conhecer os filhos e netos de minha prima pessoalmente, mas contatei por telefone e hoje recebi a proposta de sua filha para ser sua amiga no Facebook.

 Estou muito feliz, pois a minha família está aumentando, ou melhor, estou experimentando o sentimento de uma família unida, coisa que deveria ter ocorrido na época dos meus avós, há cem anos.

Minha mãe sempre contava que meu avô tinha outro irmão. Ela mesma vivia investigando o seu paradeiro, mas nunca o encontrou. Provavelmente ele já tenha falecido. E nós nunca o conhecemos.

Essa história foi escrita graças aos relatos que ouvi durante minha vida inteira, contados pelo meu avô, minha avó, tia- avó, prima e pela minha mãe. As consequências desse genocídio em nossa família não se restringem a este relato apenas. Os horrores vividos pela família de minha avó materna ainda serão relatados, assim como o da família de meu pai.

A minha intenção é começar uma campanha onde nós, descendentes de armênios, contemos a história de nossos antepassados e as consequências do genocídio Armênio. Com isso teremos um registro histórico e autêntico que poderá servir como documento no futuro.

Regina Kurdoglian Jones

Se você também tem relatos semelhantes envie para o Portal Estação Armênia para publicarmos e criarmos um acervo para a história da armenidade.

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